12 de ago. de 2013

O garimpo, a selva, o índio (relato)



O DESLOCAMENTO PELA SELVA AMAZÔNICA

        Inclinações que frequentemente determinam subidas amparadas com as mãos tocando o chão, poucos metros e segue-se um declive igualmente íngreme, ultrapassando facilmente cinquenta graus, não raro um combatente despenca morro abaixo pela terra fofa e escorregadia. A frequência cardíaca dispara, as carótidas pulsando visivelmente, a respiração torna-se ruidosa. Findada a ascensão, mesmo as vigorosas pernas tornam-se cambaleantes e imprecisas para encarar a descida consecutiva; assim sucede-se quilômetros a fio sem encontrar qualquer planície que proporcione alguma trégua. A altitude média de novecentos metros garante uma temperatura amena mesmo sobre o trópico, todavia os raios solares incidem com violência quando em raríssimos momentos a floresta permite. As arvores são altas, algumas gigantescas. Porém, uma vegetação intermediaria dificulta a progressão por isso seguimos por tênues trilhas utilizadas pelos índios, o que acelera o deslocamento. A instabilidade do tempo é inigualável, chuvas muito fortes se iniciam tão inesperadamente quanto desaparecem, tornando o equipamento mais pesado; a roupa permanece constantemente molhada se não pela chuva, pelo suor. O caminho é rompido com coturnos, o que mantem alguma estabilidade no tornozelo, garante uma proteção adicional a cobras e galhos, entretanto, frequentemente molhado, causa desconforto adicional. Com bom preparo físico, dez a doze horas de caminhadas consegue vencer somente dez quilômetros (calculados em linha reta nas cartas de localização).

         A maioria das tribos locais já teve algum contato com o homem branco, por elas caminhamos sem muitos riscos de ataques (a presença do exercito parece interferir pouco na rotina do índio), todavia, algumas regiões o índio não teve contatos ostensivos, permanece praticamente intocado. Nestes locais nem garimpeiros, nem agentes da FUNAI e FUNASA se arriscam.


A RENDIÇÃO

          Com o dia já escuro um homem de aproximados 35 anos se apresentou no portão do pelotão de fronteira (em um raio de quase 200 quilômetros nenhuma cidade interpõe-se à floresta), descalço, com uma mochila do exercito quase vazia e um tanto gasta, um shorts curto e uma camiseta velha e suja. Falava compassadamente, traduzindo calma. Aparentava estar bem, à luz mostrou-se hidratado, corado, nutrido, os pés estavam discretamente edemaciados, alguns cortes na sola, mas nada que interferisse em seu caminhar.

Garimpeiro, tendo seu suprimento temporariamente cortado, devido a operação do exercito (que impôs temporária cautela aos pilotos do garimpo próximo), ficando quase sem mantimentos, preferiu entregar-se à seguir penosamente para cidade. A distancia de 45 quilômetros do garimpo ao pelotão garantiu 4 dias de caminhadas, com turnos de mais de 12 horas e descalço (o chinelo arrebentara).  Na mochila ainda havia um pouco de farinha, que era consumida com racionamento, e a alimentação era complementada com palmito derrubado e consumido no trajeto (a despeito da proferida diversidade biológica, é extremamente difícil alimentar-se na selva, raras arvores frutíferas, os animais são ariscos e sem uso de arma ou armadilhas é praticamente impossível capturar algo para comer).

Para o garimpeiro este deslocamento pela selva apresenta um risco adicional, os Yanomami que podem ser tão hostis quanto o próprio ambiente. Porem, a audácia, o senso de localização, o conhecimento do território provavelmente deve ser acompanhado de saberes suficientes sobre o lido com as tribos locais.


O GARIMPO

O ouro extraído, segundo disse, já havia sido escoado para a capital pelas ultimas aeronaves. Referia trabalhar sozinho, mas próximo a um garimpo maior cuja produção diária era de aproximados 200 gramas e extraída pelo trabalho de uma equipe de 6 garimpeiros mais o trabalho do índio que é negociado em gêneros, armas, munições, roupas, lanternas, etc. O garimpo é feito junto aos cursos d’água onde os barrancos são desmontados com jatos d’água, ou a terra é retirada do fundo do rio (ali um mergulhador direciona o cano de aspiração). A água com terra, lama e ouro e mercúrio é depositada em uma caixa com predomínio em comprimento cujo forro é composto de um tecido parecido com um carpete. Ao decorrer do processo as partículas mais pesadas são depositadas neste tecido que posteriormente é lavado, o conteúdo dessa lavagem é uma terra fina amarelada com grande teor de ouro que esta amalgamado com mercúrio e da queima desse material evapora-se o mercúrio resultando em um material de maior teor do precioso minério.

No garimpo os trabalhos são mensurados em gramas de ouro. O mergulhador detém 40% da produção, a outra porção é dividida entre os demais trabalhadores. Uma mulher acompanha o grupo, encarrega-se do preparo da alimentação e também presta serviços sexuais. Os fretes dos aviões também são combinados em gramas do minério.

A produção é vendida em torno de 15 reais mais barata que o valor do mercado legal. Atualmente creio que nesta região o ouro esteja cotado em 95 reais a grama, neste caso a produção de 200 gramas por dia a 80 reais/grama rende em torno de 16 mil. No mês são 6 quilos de ouro ou 480 mil reais no cambio negro.


A LOGÍSTICA

        Este garimpeiro que, segundo referiu, trabalhava com o auxilio dos índios chegou até a região partindo de Boa Vista em uma canoa, levando cerca de 35 quilos em gêneros, facão, munição, rede, lona e a caixa para separação bruta do ouro, demorando cerca de 10 dias para chegar até o presente local.

          O transporte dos suprimentos, equipamentos e escoamento da produção, bem como o transporte dos demais garimpeiros é feito por aeronaves monomotores, conhecidas como papatango. Com capacidade para até meia tonelada, cada viagem da aeronave custa em torno de 150 gramas de ouro (12 mil reais). As pistas clandestinas são abertas no meio da floresta, sob um trabalho hercúleo para a remoção das arvores e raízes. Estreitas e curtas, as pistas representam um risco importante para os pilotos, em alguns locais a pista é tão curta que o avião é amarrado a uma árvore e quando atinge o torque máximo a corda é cortada para que assim possa decolar em distancias mais curtas. (fotos da pista clandestina, inclusive desta que era usada neste garimpo, estão mais abaixo na postagem, outra foto mostra o soldado recolhendo bujão do garimpo próximo à pista clandestina)

       Na ultima missão que realizei, há 40 kilometros do pelotão, encontramos um trator de esteira grande no meio do mato, que deve ter sido abandonado há cerca de 10 anos. Peça a peça o trator deve ter sido transportado por aeronaves e remontado na selva, o que mostra uma atividade organizada.-

      A despeito deste estranho ocorrido, o garimpo ilegal na floresta se mantem com grande intensidade, o controle realizado na floresta é quase insignificante em relação à dimensão do território e as dificuldades de deslocamento, além de muito caro.

         Acho difícil posicionar juízo de valores muito estreitos sobre a questão do garimpo e especialmente dos garimpeiros. Macroestruturalmente a ascensão social e o acúmulo são a ordem do dia, para trabalhadores com baixo nível de instrução formal o mercado de trabalho legal não oferece qualquer oportunidade que se aproxime às possibilidades de ganho de um garimpo nestas regiões. Todavia, podemos acrescer informações para que cada um possa avaliar melhor.


O IMPACTO DO GARIMPO

         O mercúrio: existe muita divergência na literatura sobre a quantidade emprega no garimpo na região amazônica, mas os valores ultrapassam 100 toneladas/ano, sendo que cerca de metade vai para os cursos d’água e outra metade para a atmosfera (que é rapidamente reincorporado aos cursos fluviais por meio das chuvas). Este metal tem caráter cumulativo nas cadeias biológicas, especialmente a forma conjugada (dietilmercúrio) que atravessa facilmente barreiras biológicas, dentre seus efeito sobre o organismo humano destaco a neurotoxicidade.

          O cianeto: não descrevi acima, porem o cianeto é utilizado na lixiviação do ouro, esta substancia não apresenta o mesmo caráter cumulativo, porem seus efeitos na intoxicação aguda, com muita frequência, são fatais. Se não me engano, no ser humano é um desacoplador da cadeia de elétrons, é o vulgo chumbinho usado clandestinamente para matar ratos.

      Alteração física: existe significativa alteração no leito e margens dos rios, a modificação do nível de minerais em suspensão na água altera gravemente a luminosidade o que interfere na base da teia alimentar dos rios, o fitoplanctom. Isso tudo modifica bastante o ecossistema aquático e ribeirinho.

         Impactos políticos, sociais e econômicos: é importante considerar, na composição do nosso raciocínio, o emprego de trabalho de menores de idade, a prostituição, comércio ilegal de armas, acidentes de trabalho, a venda ilegal de mercúrio (anualmente o garimpo ilegal na Amazônia consome sozinho mais mercúrio que toda a necessidade nacional/ano). A morbidade e mortalidade são muito elevadas para os trabalhadores do garimpo, acidentes de trabalho, violência, malária, intoxicações por mercúrio.

          O índio: as populações nativas ficam sujeitas à contaminação por mercúrio, além disso, é importante lembrar que em muitas tribos a imunização não é realizada, ficando a mercê de germes trazidos pelo homem branco. A introdução da arma de fogo, especialmente nesta região de Yanomami, tem provocado mortes frequentes pelo uso de arma de fogo em seus conflitos que originalmente eram travados com uso de bastões de madeira o que raramente provocam ferimentos fatais.

Nenhum comentário: