1 de dez. de 2010

GERMEnal

Olhou no espelho, mostrou os dentes, e viu caries pretas na base dos caninos inferiores. Não se preocupou, antes, sentiu uma espécie de satisfação amarga. Nunca havia tido um podre nos dentes, talvez quando fosse criança, mas não em sua dentição permanente. Quanto tempo já fazia que não se preocupava em escová-los? Olhou pelo batente do banheiro e pensou que talvez o mesmo tempo que já não arrumava a casa, o mesmo tempo que as roupas se empilhavam pelos cantos exalando um odor característico, o mesmo tempo que vira a desgraça irremediável de ser humano.

Uma pressão na cabeça começava a despontar, ainda não classificava como dor de cabeça. Pensou que talvez o corpo já estivesse buscando alternativas pra compensar a fome, lembrou das vias neoglicogênicas e glicogenolíticas, tentou lembrar os intermediários da lipólise até o acetil coa, mas não conseguiu. Foi até a cozinha para remediar as três bananas ingeridas no transcurso de 36 horas. A despeito da possibilidade de cozinhar, lavou dois ovos, meteu-os com casca dentro do liquidificador sujo e com mais um tanto de leite preparou sua refeição. Apesar da náusea reflexa, virou o copo do liquidificador de uma só vez.
Recostou no sofá para buscar alguma distração na misérias dos mineiros de Zola, mas a passividade dos grevistas esfomeados impressas naquelas paginas fez lembrar a sua própria rebeldia pacifica.

“Se o pau comesse as coisas seriam mais pacificas, o que fodia era o monopólio da violência”. Apesar do pensamento, não conseguia pensar em nada concreto para materializar todo o ódio que assolava sua mente. Sentiu desprezo por seu ódio medíocre, viu nele fraqueza, incapaz de transpor uma série de medos: suficiente para responder agressivamente a uma provocação, mas sem coragem para agredir, sem coragem para a violência pura.

Fechou os olhos procurando se acomodar sem encostar-se a sua própria pele, sentia-a suja, grudenta, fosse antes tomaria banho, ou nem se quer chegaria a ficar com esse suor impregnado. Naquele escuro forjado teve certeza que se tivesse um pedaço de terra, com poucas sementes e uma inchada não haveria fúria, nem dilemas morais, nem filosofias da miséria. Mas era um animal trancafiado em seu apartamento, doente, com pensamentos difusos e um sentimento de impotência crescente.

Deixou o livro de lado ignorando o que ocorreria àqueles miseráveis rebelados, e da mesma forma, buscou dormir, descrente do próprio futuro.