14 de out. de 2013

Vagem de Baunilha



Há alguns anos, quando ainda era chamada Frotência, um sujeito conhecido como Vargem de Baunilha, antes de ter sua fama difundida, protagonizava uma brincadeira feita com os forasteiros. A brincadeira, invenção dos jovens do vilarejo, consistia em perguntar para os recém-chegados se somente pelo perfil poderiam dizer das qualidades de um homem, no mínimo se ranzinza ou boa praça.

Acontece que seu Baunilha tinha um perfil muito distinto, de forma que nenhum paralelo havia sido descrito, mesmo por aqueles que diziam já terem estado nos extremos mais gelados do continente.

Cada novo visitante era apresentado à Vagem que se posicionava de perfil para um fundo muito claro, de tal forma que só o contorno escuro do rosto podia ser visto. Isto causava muito espanto e as mais diversas reações eram observadas, causando o deleite dos expectadores que gargalhavam fazendo com que Vagem não se aguentasse e também caísse no riso.

Quando os forasteiros impressionados com o que viam se aproximavam do homenzinho para mirar melhor tão distinta fisionomia, este vestia seu óculos hermético, parecidos com os de natação, e de um salto assentava-se pitorescamente sobre o banco da motocicleta, partindo com um sorriso em uma tal ressonância com o motor que ambos pareciam um só trepidar, ou só maquina ou só homem, deixando os visitantee com toda a perplexidade para traz.

Conta a história que em uma manhã de inverno rigoroso chegou este pequeno homem encapotado em pele bem curtida de urso branco. Os moradores espantados se aglomeraram para ver inusitado visitante. Tanta atenção se devia primeiro por trajar pele tão rara de animal tão feroz, e ainda mais por possuir um porte franzino, algo que não ultrapassaria os 50 quilos. Mas a grande surpresa foi quando baixou o capuz e puderam mirar aquele rosto de fronte aplainada e olhos puxados quase a se fecharem em uma pele algo que amarelada. Falava rápido, e como apontava para si e dizendo Van-Gein-Bao-Nija, logo recebeu uma versão mais simples de pronunciar e um tanto mais engraçada.

Soltava as palavras com velocidade e sempre ao terminar as sentenças esboçava um sorriso significativo que fazia todos gargalharem, com isso, Vagem de Baunilha achava ainda mais graça e gargalhava com os demais. Sua risada era muito compassada e de uma frequência rápida peculiar, o que acrescia ainda mais divertimento.

Muito simpático e solicito, com aquele sorriso no rosto, era sempre bem vindo, e a cada coisa que lhe parecia desconhecida Vagem arregalava os olhos, que na verdade os deixavam apenas de dimensões normais, e enquanto soltava quase um rosnado grave fazia um bico proeminente.

Creio que este rosnar grave nunca fora tão grande e acompanhado de olhos tão arregalado do que quando seu Baunilha viu uma motocicleta. Essa cara de espanto e admiração peculiar se repetiu a cada vez que a motocicleta passava de tal sorte que estampado à admiração teve ajuda dos amigos, que naquela época era quase toda a comunidade, para juntar algum dinheiro e comprar aquilo que lhe parecia a coisa mais curiosa que já tinha visto.

Em pouco tempo Baunilha já tinha muita experiência com a maquina e mesmo com tamanha intimidade e frequência de uso a motocicleta lhe proporcionava imensa felicidade, comprovada pelas moscas que Baunilha cuspia ao retornar dos passeios, denunciando o sorriso amplo a contrapor-lhe os dentes ao vento.
 
Hora contente, hora admirado, hora admirado e contente, eram as expressões de Vagem e não havia quem não se alegrasse, ao menos um pouco, e mesmo os mais distímicos sentiam o suficiente para um sorriso de dentes velados. De estranho forasteiro passara a ser a própria identificação da cidade, já era tão querido dos moradores que fora dali os emigrantes se referiam à terra natal como a cidade do Vagem de Baunilha.

De uma forma muito natural e espontânea as pessoas se aproximavam de Baunilha, procurando contagiar-se com estas emanações que lhe caracterizavam. Quanto mais às pessoas se aproximavam mais Baunilha foi ficando silencioso, detendo-se maior parte do tempo, com seus olhos de admiração e sua vocalização de espanto/curiosidade, a escutar as pessoas. Quando o tema era triste Baunilha não se entristecia, mas muito se admirava, e quem contava o fato sentia-se muito bem ao encontrar tamanha atenção. Quando o tema era alegre Baunilha se deleitava tanto ou mais que a própria pessoa.

Já não era todos os dias que aquele trepidar sonoro, Baunilha e motocicleta, saiam pela cidade enchendo de graça com um efeito Doppler tão familiar de todos. Isso pq seu Vagem passava a maior parte do tempo escutando as pessoas.

Certeza de que Vagem poderia lhes dar uma solução ninguém tinha, alias, Vagem falava ainda muito mal, ninguém nunca tinha escutado ele pronunciar palavras com erres, tudo era substituído por éles, e grande parte das vezes ele somente repetia entusiasmado as ultimas coisas que a pessoa tinha dito. Mas mesmo assim, muita, mas muita gente queria ter um tempo com Vagem para lhe contar sobre o que estavam vivendo ou sentindo.

Era o jovem que tinha ido mal nos exames, a apaixonada que não tinha coragem de se declarar, era o que se sentiu prejudicado em algum negócio, passando pelos traídos e chegando nos arrependimentos de quem traiu. Todos os dias, muita gente aguardava por aquelas expressões de atenção e compreensão.

Todos os dias Baunilha comia as distintas refeições do dia em diferentes casas, hora acompanhado de muitas pessoas a contarem seus casos, hora em refeições mais reservadas, onde conteúdos mais delicados eram tratados. Foi assim que seu Baunilha foi ganhando mais peso, perdendo aquele ar esquelético.

Mesmo durante seu trabalho na marcenaria, entre um prego e outro, um rosnar ou uma gargalhada eram produzidos na dependência do conteúdo. Com isso ele atrasava um pouco seu trabalho, mas pouca coisa, havia nele certa agilidade com as ferramentas e uma graciosidade nos movimentos que nos primeiros dias do trabalho chamou muito a atenção dos companheiros do serviço.

Conforme os anos foram se passado a demanda sobre Baunilha foi reduzindo progressivamente. As pessoas pareciam mais tranquilas, mais decididas de si. A própria economia da cidade sofrera uma alteração muito significativa. Outros indicativos sociais também foram alterados, reduzindo em muito os números absolutos de conflitos interpessoais. E aquela escuta interessada já não era exclusividade de seu Baunilha.

Parece que conforme as pessoas, ao encontrarem tamanha atenção sem qualquer resistência, iam sendo capazes de falar daquilo que as incomodava e que jamais puderam expressar verbalmente. Na medida em que faziam isso uma compreensão do problema acontecia, ficando muito mais fácil e tangível qualquer tipo de ação. Muitas das vezes, ao pronunciarem sobre coisas que aparentemente qualquer um acharia ridículo ou reprovável, mas que encontrava em Baunilha um olhar deslumbrado de atenção, o comunicante passava a encarar o conteúdo como natural ou no mínimo respeitável e, como sabia não encontrariam reprovação alguma, sentiam-se a vontade para modificar os procederes. Além disso, não encontrando qualquer juízo de valor expresso naquele estranho homem de olhos em fenda, passaram a observar que o centro do julgamento residia em si mesmos.

Em uma manhã de inverno um fato chamou a atenção dos moradores da antiga Frotência, atual cidade Vagem de Baunilha, causando alvoroço e aglomeração. As pessoas se amontoavam na praça central da cidade para ver o fenômeno. E logo o que todos comentavam aparecia: era Vagem que passava de quando em quando na motocicleta, mas sem aquele, até então, infalível trepidar sonoro de risada e motor. Notaram que trajava aquele lendário casaco de couro, mas o grande espanto estava nas lágrimas que escorriam.

O alvoroço cessou quando seu Baunilha parou de frente a praça principal, e daquelas fendas de olhos, ainda mais fechados, escorriam lágrimas copiosas, e depois de tanto tempo contando de tudo para seu Baunilha, ninguém conseguiu dizer nada. Parecia, estranhamente, que até em seu choro Baunilha não era somente tristeza, parecia uma mistura de alegria com saudade, como a satisfação de ver um filho bem criado e que necessita partir justamente devido a boa criação.

As pessoas em silêncio contemplaram profundamente consternadas aquela cena e buscando algum conforto deram-se as mãos. Então, diante da espontânea manifestação coletiva Vagem de Baunilha arregalou os olhos, fez aquele bico por onde escapou um grande rosnar de espanto/admiração, em uma expressão muito familiar a todos, e colocou seus óculos, para que novamente em uníssono, risada motor pudessem ser novamente escutado.

Partiu acelerado em gargalhadas muito mais altas que as de costume rumo a autoestrada e apesar daquele afastamento mais ligeiro causar um efeito Doppler muito mais engraçado ninguém sorriu.


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