16 de dez. de 2009

A fenda

Não sabia ao certo quando aquelas pequenas folhas de nervuras paralelas e longilíneas haviam irrompido na tênue fresta entre o meio fio e a calçada. Mas agora, com pouco mais de um palmo, tinha estatura suficiente para estampar contraste em meio a tanto cinza amarronzado de sujidade velha. As estreitas folhas alojavam-se sob estreita fenda quase de frente para a estreita porta que escondia corredor também da mesma dimensão entre loja e outra.

Ainda muito cedo, sob céu que começava a se azular, ele saia para o trabalho, e na penumbra recém desfeita um verde escuro emanava daquele pequeno ser. A porta rotineiramente rangia rápido a essas horas, mas, já há alguns dias que esse costume era abalado. O ranger era mais prolongado, quase cuidadoso, e dividido em dois tempos, o primeiro, para que a cabeça espiasse se ali estava o vegetal, e o segundo para deixar passar o corpo. Contemplava altivo aquela planta, como quem contempla um inimigo derrotado, com um ar orgulhoso e respeitoso. Pisaria nela se não fosse tão pequena, esmagaria suas folhas, e folhas é tudo o que é, a esfacelaria sob a sola gasta de seu tênis. Mas não gostava de covardias, fosse maior, lhe daria um bicudo, ou lhe agarraria pelo tronco e esganaria chacoalhando toda sua copa.

E assim partia, com alguma raiva que se somava aos seus passos rápidos, passos de quem já ha muito não dividia caminhada com alguém.

Ao retornar, a escuridão começava a se refazer, de tal sorte que a claridade era quase a mesma da manhã, mas o barulho e movimento eram maiores, e o cheiro dos escapamentos era visível. Não reduziu os passos até que estivesse de frente para sua esguia porta. A chave no trinco, com um movimento de cabeça olhou por cima do ombro esquerdo e de canto de olho, por onde a luz atravessava sem divergir pela lente do óculos velho e de vidro riscado, viu embaçado o verde, quis virar um pouco mais para que seus óculos o auxiliassem. Desistiu da idéia, não se rebaixaria a esse ponto, mas detinha seu olhar, tracionando a musculatura de seus olhos desconfiados, mas o desconforto se tornava físico, e já podia sentir seus globos oculares.

Virou o trinco, entrou sem olhar para traz. Trancou a porta e seguiu corredor a dentro.

No meio da madrugada a porta rangeu em um só tempo. E com um impulso deixou que ela fechasse atrás de si fazendo um barulho significativo. Tinha a cara cansada, de quem fechava os olhos mas não dormia.

Aproximou do vegetal, até que estivesse entre seus pés. Olhou para baixo, e ofegante, como se tivesse tomado uma decisão difícil, estendeu a mão até suas folhas sem dobrar os joelhos, mas sentiu os tendões e desistiu da manobra. Olhou detidamente o horizonte estreitado pelos prédios e acumpridado pela rua. Parecia vazia, não fosse aquela insignificância arrogante que rebentava despropositadamente em meio ao cimento.

Sentou-se no meio fio em movimento vagaroso, e faltando pouco pra se encostar, deixou o corpo cair, sentindo certo abalo na coluna. Com a planta do seu lado direito poderia estender-lhe a mão mais forte e arrancar-lhe toda, até suas raízes, não incorrendo no risco de passar-lhe a faca e dias depois algum broto diminuto viesse denunciar-lhe a ação.

De súbito, agarrou a planta, abarcando todas suas folhas em sua palma. Apertou o punho até tremer-lhe todo o braço, mas não puxou. Fechou os olhos com força concordante com sua mão, ressaltando-lhe todas as rugas do rosto. O punho tremendo e os dedos alternando em qual fazia mais força iam esmagando o pequeno chumaço de folhas. Com os olhos fechado aproximou a face da tremula mão. Já podia sentir o cheiro que emanava. Tocou o rosto nas pontas das folhas que escapavam por entre o indicador e o polegar.

E por entre a fenda mergulhou até a raiz do vegetal, e ali estava ele criança, correndo sobre folhas longilíneas e paralelinervias atrás da bola rudimentar. Outras crianças corriam com ele, e cansados de bola subiam em arvores, dependurados em galhos, muitas vezes presenteados por frutos não muito maduros, mas de consistência suficiente para a impaciência da idade, e com algumas tabuas equilibradas, pregadas e amarradas entre os galhos, aquilo se tornava o melhor e mais arrojado esconderijo e recanto do universo, e com um chumaço de folhas era possível comprar pedras especiais de quem vinha la de baixo para poderem serem arremessadas nos frutos mais altos...

A dor chamava-o para fora da fenda, o braço fadigado já não conseguia exercer tanta pressão. Soltou o vegetal, algumas folhas não se sustentaram e arcaram nos pontos danificados. Olhou para uma das direções da rua, levantou-se, apertou a mão contra a face, sorveu todo o cheio que pode e seguiu, mas já sem toda aquela pressa inconsciente.