Ultraresumidamente:
algum tempo se passou, não muito. Estou médico e oficial do exército e vim
parar no meio da selva amazônica, na serra de surucucu onde habitam índios com
pouquíssimo contato com o branco...
Tive
alguns contatos com os indígenas da região, os Yanomami, sendo a maioria deste
contato em situações de atendimento médico sob regime de urgência e emergência
desencadeado por violência entre esta população. Parece tratar-se que “A
Guerra, tal como praticada por esse grupo indígena, faz parte de uma estrutura
diacrônica que organiza a rede de suas relações sociais em sua interface com o
espaço e o tempo” (Rogério Duarte). Aqui, os índios não compõe uma população homogênea,
estão distribuídos em pequenos grupos com dinâmicas próprias e até caracteres
fenotípicos distintos foi possível observar entre grupo e outro. Parte das
minhas restrições para o atendimento dos índios no posto médico da Funasa se
baseia em manter uma posição neutra entre os diferentes grupos, de forma a não
prestar atenção privilegiada a qualquer grupo, e resguardar o pelotão de
conflitos específicos. Algumas missões na selva são acompanhadas por guias
Yanomami, porem, muito de sua rota é baseada na relação de amizade ou inimizade
com grupos vizinhos, estando até mesmo sua trajetória limitada por estas
relações. Percebe-se claramente que “os conflitos intercomunitários e a
dinâmica dos ciclos de vingança” influenciam de maneira explícita suas atividades
cotidianas e rituais.
O que
tenho presenciado são conflitos de grande monta, verdadeiras batalhas. Ontem
presenciei parte do resultado destes conflitos: atendi 3 pacientes alvejados na
cabeça e uma criança no tórax; o piloto relata 4 mortes e outras 2 evacuações
que não presenciei (enquanto digito escuto as aeronaves pousando para as
evacuações). Superficialmente conversando com quem esta na região há algum
tempo, e em conversa fragmentada com alguns índios (são poucos os que falam
nossa língua), parece que os conflitos encontram em suas composições questões
de rivalidades anteriores, com peso de vingança e que novos conflitos estão
baseados em questões alimentares e de “posse” e “roubo” das mulheres (ainda não
compreendi como isso se da, conversar diretamente com as mulheres é difícil,
não encontrei alguma que falasse com o mínimo de fluência o português). Como
exemplo, o próprio conflito narrado a cima, segundo índios que acompanhavam os
feridos, foi desencadeado pelo “roubo” de frutos de pupunha. Pode parecer algo
terrível a briga por míseros frutos, todavia, observando as crianças pude
constatar desnutrição proteica importante em todas (pergunto-me se o fenótipo
de 1,5m de altura é mais que uma questão genética, se não é uma manifestação da
privação proteica), neste caso não se trata somente de frutos, mas sim da
própria sobrevivência. Eu estou ajudando na manutenção e expansão da horta do
pelotão, e pude constatar a pobreza do solo que é bastante arenoso e necessita
de um trabalho adequado na preparação da terra para conseguir alguma
produtividade (incluindo adubação, irrigação e correção de pH), imagino então
que disputa por regiões de maior produtividade estejam em jogo, especialmente
considerando a dificuldade de obtenção de alimento neste lugar, as poucas
técnicas de cultivo, e em como estas tribos não apresentam um caráter nômade
sob regime de tamanha privação (eles também não criam animais). A questão das
mulheres, parcialmente, pode ser associada ao infanticídio que restringe a
população feminina, gerando mais disputa entre os homens, fatores sociais e
culturais ainda não tenho condições de avaliar.
Uma
situação que me parece de risco é a atividade das equipes de saúde da Funasa,
estes trabalham sem a presença de um médico (embora eu creia que deva existir
este profissional em algum contrato), com poucos recursos farmacológicos e de
instalações. Além disso, esta equipe encontra dificuldades de realizar
atividades em alguns grupamentos, aparentemente pela presença do garimpeiro que
se associa, de certa forma, a alguns grupos indígenas, oferecendo recursos em
troca de elementos logísticos e na manutenção destas equipes afastadas (para
não comprometer a localização dos garimpos – região rica em ouro e diamantes).
Estas
diferenças culturais estão sendo difíceis de administrar, pessoalmente,
confesso que nem sempre consigo manter uma atitude empática em relação ao
índio, ainda me faltam recursos para compreender.
Os
atendimentos que prestei foram em situações desapropriadas, faltando recursos
farmacêuticos e instrumentais para um trabalho adequado, clampiei e oclui
artérias a céu aberto no meio de moscas sem recursos anestésicos ideais,
instrumentais, nem assepsia apropriada. A segurança também é precária, alguns
índios sondavam o atendimento empunhando facões. Diante desta situação
solicitei a presença de um soldado armado, e cogito a possiblidade de andar com
uma pistola 9mm que é autorizado para oficiais médicos nesta região do pais.
Aqui
não existe aquela imagem idealizada do índio, tão pouco de suas guerras.
Segundo
reporta Rogério Duarte do Pateo:
“Entre
os Yanomai, não há captura de troféus pelos matadores. Essa ação parece
substituída pela destruição total de objetos do morto pelos sepultadores. Por
sua vez, a aquisição de novos nomes, tão importante em outros contextos
etnográficos, dá lugar à obliteração total dos nomes das vítimas.”
“Suas
raízes estão fincadas em um registro simbólico que é baseado na decomposição
política e ritual do corpo e da pessoa do morto, decomposição esta que
configura, em teoria e ato, a alteridade canibal como eixo ideológico fundador
da totalidade social e cultural Yanomami.”