Autor:
Carl Rogers
Livro:
Tornar-se pessoa; cap II
Creio
que todos aqueles dentre nós que trabalham no domínio das relações humanas
enfrentam um problema semelhante quando se trata de saber como aplicar os
conhecimentos que a investigação nos trouxe. Não podemos seguir de uma maneira
cega e mecânica essas conclusões ou então destruímos as qualidades pessoais que
esses estudos põem precisamente em relevo. Julgo que devemos nos servir desses
estudos, submetendoos à prova da nossa própria experiência para formar novas
hipóteses pessoais que, por sua vez, utilizaremos nas nossas próprias relações
pessoais futuras.
Por
isso, mais do que tentar dizer a vocês como utilizar os resultados que lhes
apresentei, prefiro indicar-lhes o tipo de questão que me suscitam esses
estudos e a minha própria experiência clínica. Procurarei dar-lhes algumas
hipóteses variáveis que orientam o meu comportamento quando mergulho numa
relação que eu desejaria que fosse de ajuda, quer se trate de estudantes, de
colegas, da família ou de clientes. Passo a enumerar algumas dessas questões ou
reflexões.
1.
Poderei conseguir ser de uma maneira que possa ser apreendida pela outra pessoa
como merecedora de confiança, como segura ou consistente no sentido mais
profundo do termo? Tanto a investigação como a experiência nos indicam que isso
é muito importante e, com o decorrer do tempo, encontrei respostas que julgo
serem melhores e mais profundas para essa questão. Parecia-me que se eu
preenchesse todas as condições exteriores que inspirassem confiança — a
pontualidade nas entrevistas, o respeito pela natureza confidencial das
entrevistas, etc. — e se eu agisse da mesma maneira durante as entrevistas,
essas condições estariam cumpridas. A experiência, porém, ensinou-me que, por
exemplo, o fato de me comportar com uma atitude permanente de aceitação, se na
realidade me sentir irritado, cético ou com qualquer outro sentimento de
não-aceitação, acabaria por fazer com que fosse considerado inconsistente ou
não merecedor de confiança. Comecei a reconhecer que ser digno de confiança não
implica ser coerente de uma forma rígida, mas sim que se possa confiar em mim
como realmente sou. Empreguei o termo “congruente” para descrever o modo como
gostaria de ser. Com este termo pretendo dizer que qualquer atitude ou
sentimento que estivesse vivenciando’ viria acompanhado da consciência2 dessa
atitude. Quando isso é verdade, sou, naquele momento, uma pessoa unificada e
inteirada e é então que posso ser o que sou no mais íntimo de mim mesmo. Esta é
uma realidade que, por experiência, proporciona aos outros confiança.
2. A
segunda questão relaciona-se de muito perto com a primeira: poderei ser
suficientemente expressivo enquanto pessoa para que o que sou possa ser
comunicado sem ambigüidades? Julgo que a maioria dos meus fracassos em realizar
um relação de ajuda se deveu a uma resposta não-satisfatória a essas duas
questões. Quando estou vivenciando uma atitude de irritação para com outra
pessoa e não tomo consciência dela, a minha comunicação passa a encerrar
mensagens contraditórias. Minhas palavras comunicam uma determinada mensagem,
mas estou também comunicando de uma forma sutil a irritação que sinto e isso
confunde o outro e tira-lhe a confiança, embora também ele possa não ter
consciência do que esteja causando a dificuldade entre nós. Quando no papel de
pai, terapeuta, professor ou administrador deixo de ouvir o que se passa em
mim, devido à minha própria atitude de defesa que me impede de discernir os
meus próprios sentimentos, é nessa altura que parece dar-se esses tipo de
fracasso. Por isso considero que a lição mais fundamental para quem deseja
estabelecer uma relação de ajuda de qualquer espécie é a de se mostrar sempre
tal como é, transparente. Se numa dada relação sou suficientemente congruente,
se nenhum sentimento referente a esta relação é escondido quer de mim mesmo
quer do outro, posso estar então quase seguro de que se tratará de uma relação
de ajuda. Uma maneira de exprimir isto que pode parecer estranha é que, se
posso estabelecer uma relação de ajuda comigo mesmo — se puder estar
sensivelmente consciente dos meus próprios sentimentos e aceitá-los —, é grande
a probabilidade de poder vir a estabelecer uma relação de ajuda com a outra
pessoa. Ora, aceitar ser o que sou, nesse sentido, e tornar possível que outra
pessoa o veja, é a tarefa muis dificil que conheço e que nunca está
completamente terminada. Mas o simples fato de compreender que essa é a minha
tarefa é extremamente enriquecedor, porque me ajuda a reconhecer o que estava
errado nas relações interpessoais que se obstruíram e a dar-lhes novamente uma
direção construtiva. Isto significa que, se desejo facilitar o desenvolvimento
pessoal dos outros em relação comigo, então devo desenvolver-me igualmente e,
embora isso seja muitas vezes penoso, é também fecundo.
3. A
terceira questão é: serei capaz de vivenciar atitudes positivas para com o
outro — atitudes de calor, de atenção, de afeição, de interesse, de respeito?
Isto não é fácil. Reconheço em mim mesmo e descubro nos outros muitas vezes um
certo receio em relação a esses sentimentos. Tememos que, se nos deixarmos
ficar abertos à experiência desses sentimentos positivos para com o outro,
poderemos ser enredados por eles. Os outros podem tornar-se exigentes ou
podemos nos decepcionar na nossa confiança, e tememos essas conseqüências.
Assim, por reação, tendemos a estabelecer uma distância entre nós e os outros —
uma reserva, uma atitude “profissional”, uma relação impessoal.
Estou
firmemente convencido de que uma das principais razões da profissionalização em
todos os campos é a de que ela ajuda a manter essa distância. No domínio
clínico, desenvolvem-se complexas formulações de diagnóstico em que a pessoa é
tratada como um objeto. No ensino e na administração, construímos todo tipo de
métodos de avaliação e daí que, mais uma vez, a pessoa seja encarada como um
objeto. Desse modo, tenho a impressão de que evitamos vivenciar o interesse que
existiria se reconhecêssemos que se trata de uma relação entre duas pessoas. É
uma verdadeira meta que se atinge quando compreendemos que em certas relações,
ou em determinados momentos dessas relações, podemos nos permitir, com
segurança, mostrar interesse pelo outro e aceitar estar ligado a ele como a uma
pessoa por quem temos sentimentos positivos.
4. Há
uma outra questão cuja importância pude perceber ao longo da minha experiência:
poderei ser suficientemente forte como pessoa para ser independente do outro?
Serei capaz de respeitar corajosamente meus próprios sentimentos, minhas
próprias necessidades, assim como as da outra pessoa? Poderei possuir e, se for
necessário, exprimir os meus próprios sentimentos como alguma coisa que
propriamente me pertence e que é independente dos sentimentos do outro? Serei
bastante forte na minha independência para não ficar deprimido com sua
depressão, assustado com seu medo ou envolvido por sua dependência? O meu eu
interior será suficientemente forte para sentir que eu não sou nem destruído
por sua cólera, nem absorvido por sua necessidade de dependência, nem escravizado
por seu amor, mas que existo independentemente dele com sentimentos e com
direitos que me são próprios? Quando puder sentir livremente esta força de ser
uma pessoa independente, então descobrirei que posso me dedicar completamente à
compreensão e à aceitação do outro porque não tenho o receio de perder a mim
mesmo.
5. A
questão seguinte está estreitamente ligada à anterior. Estarei suficientemente
seguro no interior de mim mesmo para permitir ao outro ser independente? Serei
capaz de lhe permitir ser o que é — sincero ou hipócrita, infantil ou adulto,
desesperado ou presunçoso? Poderei dar-lhe a liberdade de ser? Ou sinto que ele
deveria seguir meus conselhos, ou permanecer um pouco dependente de mim, ou
ainda tomar-me como modelo? Ligado a esse aspecto, estou pensando no curto mas
interessante estudo de Farson (6), que descobriu que os terapeutas menos bem
adaptados e menos competentes têm tendência a induzir conformidade a si mesmos,
isto é, ,para terem pacientes que os tomem como modelo. Por outrd lado, o
terapeuta mais bem adaptado e mais competente pode estar em interação com o
cliente ao longo de inúmeras entrevistas, sem interferir com a sua liberdade de
desenvolver uma personalidade completamente diferente da do terapeuta. Eu
preferiria estar nesta última categoria, quer como pai, como supervísor ou como
terapeuta.
6. Há
ainda outra questão que coloco a mim mesmo: poderei permitir-me entrar
completamente no mundo dos sentimentos do outro e das suas concepções pessoais
e vê-los como ele os vê? Poderei entrar no seu universo interior tão plenamente
que perca todo desejo de avaliá-lo ou julgá-lo? Poderei entrar com suficiente
delicadeza para me movimentar livremente, sem esmagar significações que lhe são
preciosas? Poderei compreender esse universo tão precisamente que apreenda, não
apenas as significações da sua experiência que são evidentes para ele, mas
também as que são só implícitas e que ele não vê senão obscura e confusamente?
Poderei ampliar ilimitadamente essa compreensão? Estou pensando num cliente que
me dizia: “Sempre que encontro alguém que, num dado momento, compreende uma
parte de mim mesmo, chego sempre a um ponto em que sei que deixou de me
compreender... O que eu procuro tão desesperadamente é alguém que me
compreenda.”
No
que me diz respeito, é mais fácil para mim sentir este tipo de compreensão e comunicá-lo
a um cliente individualmente do que a estudantes numa aula ou a colegas num
grupo de que participe. Sinto uma forte tentação de corrigir o raciocínio dos
estudantes ou de indicar a um colega os erros da sua maneira de pensar. No
entanto, quando consigo abrir-me à compreensão dessas situações,
enriquecemo-nos reciprocamente. E com os clientes em terapia, impressiono-me
muitas vezes com o fato de que mesmo um mínimo de compreensão empática, uma
tentativa hesitante e desajeitada para captar o que o paciente pretende
significar na sua complexidade confusa, é uma ajuda, embora essa ajuda seja
indubitavelmente muito maior quando sou capaz de captar e de formular com
clareza o sentido daquilo que ele vivenciou e que para ele continuaria a ser
vago e difuso.
7.
Uma outra questão é saber se posso aceitar todas as facetas que a outra pessoa
me apresenta. Poderei aceitá-la como ela é? Poderei comunicar-lhe essa atitude?
Ou poderei apenas colhê-la condicionalmente. aceitando alguns aspectos da sua
maneira de sentir e desaprovando outros, silenciosa ou abertamente? Segundo a
minha experiência, quando minha atitude é condicional, o cliente não pode mudar
nem desenvolver-se nesses aspectos que não sou capaz de aceitar completamente.
E quando — mais tarde e, algumas vezes, demasiado tarde — procuro descobrir por
que fui incapaz de aceitá-lo em todos os aspectos, verifico normalmente que foi
porque tive medo ou porque me senti ameaçado por qualquer aspecto dos seus
sentimentos. Para poder prestar uma maior ajuda é necessário que me desenvolva
e aceite esses sentimentos em mim mesmo.
8. Um
aspecto bastante prático surge da questão precedente: serei capaz de agir com
suficiente sensibilidade na relação para que meu comportamento não seja
percebido como uma ameaça’? O trabalho que começamos a realizar ao estudar os
aspectos fisiológicos que acompanham a psicoterapia confirma as investigações
de Dittes, mostrando como é fácil os indivíduos sentirem-se ameaçados num nível
fisiológico. O reflexo psicogalvânico — a medida da condutibilidade da pele
salta bruscamente quando o terapeuta reage com uma palavra que é um pouco mais
forte do que os sentimentos do cliente. E a uma frase como “Meu Deus, como está
perturbado!” a agulha quase salta do papel. O meu desejo de evitar mesmo
ameaças tão ínfimas não é devido a uma hipersensibilidade em relação ao meu
cliente, é simplesmente devido à convicção baseada na experiência, de que, se
eu conseguir libertá-lo tão completamente quanto possível das ameaças
exteriores, então ele pode começar a vivenciar e a enfrentar os sentimentos e
os conflitos internos que lhe parecem ameaçadores.
9. Há
um aspeeto específico da questão anterior que também tem importância: poderei
libertá-lo do receio de ser julgado pelos outros? Na maior parte das fases da
nossa vida — em casa, na escola, no trabalho achamo-nos dependentes das
recompensas e dos castigos que são os juízos dos outros. “Está bem”, “isso é
mau”, “isso vale dez”, “isso vale zero”, “trata-se de uma boa psicoterapia”.
“trata-se de má psicoterapia”. Tais juízos fazem parte da nossa vida, desde a
infância até a velhice. Creio que têm uma certa utilidade social em
instituições e em organizações tais como as escolas e as profissões. Como todo
mundo, muitas vezes me percebo fazendo tais apreciações. Mas, segundo minha
experiência, não favorecem o desenvolvimento da personalidade e, por
conseguinte, não creio que façam parte de uma relação de ajuda. É curioso, mas
uma apreciação positiva é, no fundo, tão ameaçadora como um juízo negativo, uma
vez que dizer a alguém que fez bem implica que também se tem o direito de lhe
dizer que procedeu mal. Desse modo, cheguei à conclusão de que quanto mais
conseguir manter uma relação livre de qualquer juízo de valor, mais isso
permitirá à outra pessoa atingir um ponto em que ela própria reconhecerá que o
lugar do julgamento, o centro da responsabilidade, reside dentro de si mesma. O
sentido e o valor da sua experiência é algo que depende em última análise dela
e nenhum juízo exterior os pode alterar. Gostaria por isso de me esforçar por
chegar a uma relação em que não julgasse o outro, mesmo interiormente. Acredito
que isto o pode libertar e fazer dele uma pessoa responsável por si.
10.Uma
última questão: serei capaz de ver esse outro indivíduo como uma pessoa em processo
tornar-se ela mesma, ou estarei prisioneiro do meu passado e do seu passado?
Se, no meu encontro com ele, o trato como uma criança imatura, como um aluno
ignorante, como uma personalidade neurótica ou um psicopata, cada um desses
conceitos limita o que ele poderia ser na nossa relação. Martin Buber, o
filósofo existencialista da Universidade de Jerusalém, emprega a expressão
“confirmar o outro”, expressão que teve para mim um grande significado. Disse
ele: “Confirmar significa (...) aceitar todas as potencialidades do outro (...)
Eu posso reconhecer nele, conhecer nele a pessoa que ele foi (...) criado para
se tornar (...) Confirmo-o em mim mesmo e nele em seguida, em relação a essas
potencialidades (...) que agora podem se desenvolver e evoluir” (3). Se aceito
a outra pessoa como alguma coisa definida, já diagnosticada e classificada, já
cristalizada pelo seu passado, estou assim contribuindo para confirmar essa
hipótese limitada. Se a aceito num processo de tomar-se quem é, nesse caso
estou fazendo o que posso para confirmar ou tornar real as suas
potencialidades.
É
nesse ponto que Verplanck, Lindsley e Skinner, quando trabalham no
condicionamento operante, se encontram com Buber, o filósofo ou o místico. Pelo
menos convergem em princípio, de uma forma bastante curiosa. Se eu considerar
uma relação apenas como uma oportunidade para reforçar certos tipos de palavras
ou de opiniões no outro, tendo a confirmá-lo como um objeto — um objeto
fundamentalmente mecânico e manipulável. E se vejo nisso a sua potencialidade,
ele tende a agir de modo a confirmar esta hipótese. Mas se, pelo contrário,
considero uma relação pessoal como uma oportunidade para “reforçar” tudo o que
ele é, a pessoa que ele é com todas as suas possibilidades existentes, ele
tende então a agir de modo a confirmar esta segunda hipótese. Nesse caso eu o
confirmei — para empregar a expressão da Buber — como uma pessoa viva, capaz de
um desenvolvimento interior e criador. Pessoalmente, prefiro esse segundo tipo
de hipótese.
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