Bruno Tolstoi
I
Nunca antes houve tantos templos. Era um tagarelar
incessante sobre O Deserto. Multidões de hábitos sedentários diziam estarem se
preparando para A Travessia. Alguns, afirmavam com propriedade e cientificismo
que a gordura sob a pele era imprescindível como provisão de energia e de água
para A Caminhada e, gulosamente, ingeriam alimentos fritos, muitos carboidratos
e bebidas adocicadas.
Alguns, demasiadamente obesos, falavam pouco, pois a
boca estava sempre ocupada mastigando, sugando e só descansavam a mandíbula
durante os longos períodos de sono diário, tido como reservatório de folego e
disposição para o desafio redentor.
Outros já se moviam pouco, comiam no próprio leito
edificado sobre altares e suas necessidades fisiológicas eram limpas por
discípulos voluntariosos. Eructações e flatulências ruidosas eram aplaudidas e
com euforia aclamados com canções e comoção:
- Tanto peso, tanta energia
estão prontos para A Travessia.
Mas sacrificam sua libertação,
para que aprendamos a redenção.
Quando enfartavam seus corpos eram pesados e um
cálculo calórico dizia quão longe teria sido sua caminhada e isso determinava
diferentes níveis de santidade.
Grandes cálices ornavam os templos, em seu interior
água e óleo, exemplificando a salvação pela obesidade em uma demonstração
empírica dos textos sagrados que versavam sobre o grande dilúvio que acometeria
todos aqueles que não tivessem atravessado o deserto e a natureza, com a física
divina, encarregar-se-ia de salvar os menos densos, os obesos, e mesmo que os
magros nadassem não teriam energia suficiente para suportar 10 dias e 10 noites
nas vastidões das águas.
II
O amanhecer quase não divisava a noite do dia. O céu
era uma espessa nuvem escura fechando toda abobada. O marco estelar bloqueado
não retardou seu despertar, a mente aflita e excitada garantiram badaladas de
ansiedade no horário pretendido.
Sentia seu pai muito próximo e, embora tivesse
partido, a cada ano que se passava suas palavras tornavam-se mais vivas de tal
forma que já conseguia repetir com exatidão tudo que lhe fora dito no dia da
partida. No clarão do relâmpago, enquanto ajustava a pesada mochila nas costas
repetiu as palavras do pai em sussurros para si mesmo:
“Filho amado, esforcei-me para que eu fosse o mais
sublime dos meus ideais e então te conceber no ventre da mais sublime mulher
que pude conquistar e te criamos para que tu nos superes. Mas, para tanto não
posso parar e aguardar que me alcances, continuarei correndo com toda a
velocidade que puder desenvolver, mas tenho a certeza que poderás correr tanto
mais do que eu e em poucas décadas irás me alcançar e ultrapassar, mas até que
isso ocorra me esforçarei para me tornar o teu maior desafio.
Parto agora sem muitos avisos ou previsões, grandes
homens não esperaram sentirem-se prontos para enfrentarem os grandes desafios
da vida.
Dei-te alimento, estímulo, amor, e agora te dou um
tesouro que venho acumulando há décadas: meu exemplo de coragem e sabedoria.
Chores agora bem como choro eu a dor do apego frustrado, mas não derramemos uma
lágrima de revolta, pois esta pode envenenar o solo fértil que preparamos.
Tua mãe fica contigo por enquanto, não porque
falta-lhe força, ao contrario, sacrifica a glorificação da própria potência
para que tu tenhas esse farol sempre aceso e saiba que ela só partirá depois de
ti para que tu também saibas o que é deixar alguém que amas. Mas não te
assustes, observes e veras que ela tem pernas cumpridas que te alcançarão em
tempos futuros.
Compreendestes que alimentar-se é ato instintivo,
alimentar-se bem é ato de inteligência. Recebestes segurança e autonomia para
compreenderes que o centro do julgamento reside em ti, sei que não te
importarás de não serdes obeso, ao contrario, felicitarás tua forma física e já
nos primeiros passos No Caminho perceberas que não existem pegadas profundas
que ultrapassem poucas centenas de metros.
Sobre O Deserto, quero que atentamente medite estas
palavras, pois te dei esperanças, mas quero que tenha desesperanças e mais que
isso: quero que tenhas virtudes e que saibas preserva-las.
Não atravessaremos o deserto em busca de salvação, não
é o impulso do medo que nos movimenta. Nossa travessia é uma exigência da
própria força que edificamos, é a condução do medo pela coragem, é a afirmação
da própria existência da natureza que desenvolvemos.
Não te falo de minhas provisões, pois a cada um cabe o
dever de conhecer as necessidades do próprio corpo e aprender a atendê-lo na
abundancia e na carência.
Aprende com teu medo a caminhar entre as víboras e não
pares ante as investidas. Quando mordido fores, continues caminhando sem te
importares qual desses rastejantes atacou. Se algum veneno poderoso te
consumires as energias fatalmente, não pares até que qualquer passo se torne a
própria manifestação do impossível. Então, deixe-te morrer, mas que em tua
agonia jamais rastejes, não sujes tua jornada com o serpentear, ainda te
restará sangue quente para aceitares o fim e se aconchegares com teu
inseparável companheiro, o medo. Mas, ele morrera antes de ti, pois tu faras a
opção pelo inevitável e não haverá nada que não seja de tua própria autoria.”
Chovia muito quando saia para A Travessia, mas antes
que fechasse a porta atrás de si percebeu que sua mãe aguardava envolta de
penumbra no canto da sala e compassivamente sorriu sem mostrar os dentes
transmitindo-lhe sentimentos profundos de dor e paz. Enquanto isso os templos
de rodízios de alimentos calóricos começavam, logo cedo, lotarem de pessoas
angustiadas a se prepararem para O Dilúvio.
Um comentário:
Parabéns cara, grande texto.
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