6 de ago. de 2013

Venus de Willendorf

Bruno Tolstoi

I

Nunca antes houve tantos templos. Era um tagarelar incessante sobre O Deserto. Multidões de hábitos sedentários diziam estarem se preparando para A Travessia. Alguns, afirmavam com propriedade e cientificismo que a gordura sob a pele era imprescindível como provisão de energia e de água para A Caminhada e, gulosamente, ingeriam alimentos fritos, muitos carboidratos e bebidas adocicadas.

Alguns, demasiadamente obesos, falavam pouco, pois a boca estava sempre ocupada mastigando, sugando e só descansavam a mandíbula durante os longos períodos de sono diário, tido como reservatório de folego e disposição para o desafio redentor.

Outros já se moviam pouco, comiam no próprio leito edificado sobre altares e suas necessidades fisiológicas eram limpas por discípulos voluntariosos. Eructações e flatulências ruidosas eram aplaudidas e com euforia aclamados com canções e comoção:

   - Tanto peso, tanta energia
   estão prontos para A Travessia.
   Mas sacrificam sua libertação,
   para que aprendamos a redenção.

Quando enfartavam seus corpos eram pesados e um cálculo calórico dizia quão longe teria sido sua caminhada e isso determinava diferentes níveis de santidade.

Grandes cálices ornavam os templos, em seu interior água e óleo, exemplificando a salvação pela obesidade em uma demonstração empírica dos textos sagrados que versavam sobre o grande dilúvio que acometeria todos aqueles que não tivessem atravessado o deserto e a natureza, com a física divina, encarregar-se-ia de salvar os menos densos, os obesos, e mesmo que os magros nadassem não teriam energia suficiente para suportar 10 dias e 10 noites nas vastidões das águas.

II

O amanhecer quase não divisava a noite do dia. O céu era uma espessa nuvem escura fechando toda abobada. O marco estelar bloqueado não retardou seu despertar, a mente aflita e excitada garantiram badaladas de ansiedade no horário pretendido.

Sentia seu pai muito próximo e, embora tivesse partido, a cada ano que se passava suas palavras tornavam-se mais vivas de tal forma que já conseguia repetir com exatidão tudo que lhe fora dito no dia da partida. No clarão do relâmpago, enquanto ajustava a pesada mochila nas costas repetiu as palavras do pai em sussurros para si mesmo:

“Filho amado, esforcei-me para que eu fosse o mais sublime dos meus ideais e então te conceber no ventre da mais sublime mulher que pude conquistar e te criamos para que tu nos superes. Mas, para tanto não posso parar e aguardar que me alcances, continuarei correndo com toda a velocidade que puder desenvolver, mas tenho a certeza que poderás correr tanto mais do que eu e em poucas décadas irás me alcançar e ultrapassar, mas até que isso ocorra me esforçarei para me tornar o teu maior desafio.

Parto agora sem muitos avisos ou previsões, grandes homens não esperaram sentirem-se prontos para enfrentarem os grandes desafios da vida. 

Dei-te alimento, estímulo, amor, e agora te dou um tesouro que venho acumulando há décadas: meu exemplo de coragem e sabedoria. Chores agora bem como choro eu a dor do apego frustrado, mas não derramemos uma lágrima de revolta, pois esta pode envenenar o solo fértil que preparamos.

Tua mãe fica contigo por enquanto, não porque falta-lhe força, ao contrario, sacrifica a glorificação da própria potência para que tu tenhas esse farol sempre aceso e saiba que ela só partirá depois de ti para que tu também saibas o que é deixar alguém que amas. Mas não te assustes, observes e veras que ela tem pernas cumpridas que te alcançarão em tempos futuros.

Compreendestes que alimentar-se é ato instintivo, alimentar-se bem é ato de inteligência. Recebestes segurança e autonomia para compreenderes que o centro do julgamento reside em ti, sei que não te importarás de não serdes obeso, ao contrario, felicitarás tua forma física e já nos primeiros passos No Caminho perceberas que não existem pegadas profundas que ultrapassem poucas centenas de metros.

Sobre O Deserto, quero que atentamente medite estas palavras, pois te dei esperanças, mas quero que tenha desesperanças e mais que isso: quero que tenhas virtudes e que saibas preserva-las.

Não atravessaremos o deserto em busca de salvação, não é o impulso do medo que nos movimenta. Nossa travessia é uma exigência da própria força que edificamos, é a condução do medo pela coragem, é a afirmação da própria existência da natureza que desenvolvemos.

Não te falo de minhas provisões, pois a cada um cabe o dever de conhecer as necessidades do próprio corpo e aprender a atendê-lo na abundancia e na carência.

Aprende com teu medo a caminhar entre as víboras e não pares ante as investidas. Quando mordido fores, continues caminhando sem te importares qual desses rastejantes atacou. Se algum veneno poderoso te consumires as energias fatalmente, não pares até que qualquer passo se torne a própria manifestação do impossível. Então, deixe-te morrer, mas que em tua agonia jamais rastejes, não sujes tua jornada com o serpentear, ainda te restará sangue quente para aceitares o fim e se aconchegares com teu inseparável companheiro, o medo. Mas, ele morrera antes de ti, pois tu faras a opção pelo inevitável e não haverá nada que não seja de tua própria autoria.”

Chovia muito quando saia para A Travessia, mas antes que fechasse a porta atrás de si percebeu que sua mãe aguardava envolta de penumbra no canto da sala e compassivamente sorriu sem mostrar os dentes transmitindo-lhe sentimentos profundos de dor e paz. Enquanto isso os templos de rodízios de alimentos calóricos começavam, logo cedo, lotarem de pessoas angustiadas a se prepararem para O Dilúvio.

Um comentário:

Ravi Cajú disse...

Parabéns cara, grande texto.