29 de jan. de 2009

Nas linhas de frente (Relato de experiência, 2o. ano da faculdade)

Quando mencionaram violência sexual já me bateu um mal estar mesclado com tristeza, nada de raiva, nem muitas palavras na mente, só esse sentimento, esta clareira nebulosa. Esfreguei a mão espalmada sobre o couro cabeludo e contraindo a musculatura da testa algumas rugas se revelavam enquanto os olhos se detinham fechados durante a ação.

Ao falaram a idade da criança eu fechei a mão com chumaço de cabelo preso entre os dedos e, numa inspiração profunda, puxei enquanto enrugava todo o rosto em uma expressão de desgosto e aversão.

Era a reunião de sexta-feira no hospital, uma supervisão onde discutíamos os casos atendidos no projeto de psicologia hospitalar. Sempre que as aulas de patologia terminavam mais cedo eu e o grande amigo Marco seguíamos para a supervisão, quase sempre no silêncio de nossa introspecção somado a vergonha e insegurança de estar em um campo de estudo e trabalho um pouco diferente do nosso e entre tantas mulheres desconhecidas.

A descrição do caso ia revelando nuances cada vez menos coloridos, até compor um quadro horrendo, um borrão cinza. A constituição física que nos era descrita revelava debilidades motoras, além de algum grau de autismo, e que sofrera, além de terríveis abusos sexuais, fraturas em mãos e pés. Marcas antigas de queimadura de cigarro e uma contusão facial, muito provavelmente produzida por soco, agregavam entalhes que configuravam uma obra dantesca. Sérios agravos de saúde inspiravam um cuidado intensivo da parte médica e da enfermagem, e a catástrofe psíquica igualmente demandavam atenção extrema dos psicólogos e acadêmicos envolvidos no suporte mental.

Mãe conivente com as ações do padrasto. O caso havia sido descoberto por uma assistente social que desconfiava das historias mal contadas pela mãe sobre os ferimentos do garoto.

A face se contraia em uma expressão de desanimo, uma respiração profunda como se uma canseira se apoderasse de mim; uma canseira que não era física, era um desgaste por tantas atrocidades cometidas pelos seres humanos. Não havia uma gota sequer de raiva, nada; apenas um padecimento silencioso, um pesar muito grande por toda a humanidade.

A reunião seguiu, mais alguns casos foram descritos, mais algumas perturbações, porem nenhum havia provocado impressões tão fortes quanto a primeira descrição.

Passaram-se seis dias até que voltássemos às atividades do projeto. Após uma aula de conteúdo desnutrido, vestimos nossas armaduras brancas e transpusemos um pouco de nossos medos, encorajando-se mutuamente seguimos, eu e o Marco, à sala da psicologia hospitalar. Ali a coordenadora sugeriu que visitássemos a criança do terrível ocorrido. Então, troquei um olhar significativo com meu amigo, como se confirmássemos que nossos carregadores estavam municiados e o gatilho devidamente destravado para uma missão de assalto, tensos, amedrontados, mas convictos da necessidade da missão.

O campo era totalmente desconhecido, nem mesmo como chegar à UTI pediátrica era de nosso conhecimento, nem tão pouco se poderíamos entrar.

Depois de alguns corredores chegamos à entrada. Abri vagarosamente a porta olhando cuidadosamente, reparando se estávamos sobre a mira reprobatória de alguém, fomos adentrando vacilantes, temerosos de sermos alvejados por alguma reprovação.

Caras inéditas vestiam um jaleco diferente, azulado e de conformação distinta do que trajávamos. Perguntei se precisaria de um daqueles e me indicaram o armário onde conseguiríamos o par.

Com as mãos devidamente lavadas, inquirimos sobre qual aposento estaria o pequenino, sendo apontado o leito quatro.

No minúsculo módulo de tratamento estavam algumas pessoas: uma senhora sentada próximo ao leito, dois médicos e talvez uma aluna de anos avançados.

Postamo-nos um pouco afastados, temendo alguma repressão, mas nem nossos nomes quiseram saber, era como se não estivéssemos ali.

Dali pude ver a criança e...

Meu Deus...

Uma respiração muito profunda inflava meu tórax e enquanto sorvia o ar fechei os olhos com força por alguns segundos. Poucos pensamentos se processavam e contra a carcaça repleta de ar uma tristeza plúmbica e desfocada me pressionava.

No leito uns olhos muito expressivos, de um vigor contrastante com sua frágil constituição física, comunicava profunda insatisfação com os procedimentos médicos. Sua mãozinha buscava, em um esforço hercúleo, retirar a mão do medico que tentava uma ausculta em seu abdome, em auxílio ao procedimento o outro doutor imobilizou o significativo esforço do pequeno.

Seus leves quinze quilos denotavam desnutrição importante, mais um nuance de crueldade, cuja sonda parenteral tentava contrapor.

A criança gemia em seu esforço contrariado, os médicos pouco falavam, a frialdade dos procedimentos manifesta na técnica silenciosa talvez tentasse proteger os sentimentos daqueles homens que por de baixo daquelas armaduras brancas reforçadas por outras azuis, eram feitos de um agregado biológico tão frágil, tão tênue, que uma leve entropia seria suficiente para lhes aniquilar a existência.

Observei mais atento os equipamentos, seguindo as mangueiras que partiam do pequenino até as maquinas ainda desconhecidas para mim. Nessa observação notei que algum coração sensível por ali estivera e pacientemente materializara seus bons sentimentos em delicados móbiles feitos com alguns materiais do próprio hospital. Talvez não esteja certo, mas creio que não teriam sido aquelas mãos de gigantes mascarados a fazê-los.

Enquanto aguardava a saída dos médicos, na batalha em que me encontrava, a trincheira foi se enchendo de lama e a umidade foi infiltrando no coturno, gelando pés cansados, de soldado acuado há meses, que começava a se questionar o porquê do absurdo hediondo de combater, o porquê da violência, e o porquê de responder com ainda mais violência. As palavras de algumas das psicólogas me vieram em mente: “... a morte seria pouco para um ser desses” - se referindo ao padrasto, e essa lembrança foi como um vento frio no meu posto lamacento, uma tristeza desolada me cansou ainda mais. Putz, psicólogas, talvez tivessem por dever crer na capacidade de transformação do sujeito, no entanto estavam reivindicando a pena capital para o individuo e ainda mais, sugerindo a tortura, a total desistência da possibilidade de alteração, em que toda a pedagogia é enterrada, sepultada, e em lapide fria grafada em letras raivosas de vingança: aqui jaz toda a humanidade.

Emudecido em minhas reflexões arfantes, me deparai com a ausência dos médicos e a necessidade de fazer algo. Entrei no aposento frente a frente à senhora postada na cadeira para acompanhantes e fronteiriço o leito se estendia entro nós. Cogitei sobre a possibilidade de ser a genitora da criança, mesmo sabendo da conivência da mãe nenhum sentimento de ódio me veio, pelo contrario, padeci da enfermidade mental da senhora, sem os preconceitos da culpa (creio que culpar seja uma forma limitada e limitante de observar a causalidade dos fenômenos, creio que um universo mais abrangente desponta quando atribuímos responsabilidade e não culpa; a culpa é imbuída de preconceito, é estática e fatalista, geradora de repressão e ódio, mas quando atribuímos a responsabilidade, então a ação é passível de compreensão e, assim, de transformação, validando métodos pedagógicos, validando acreditar na humanidade, validando todo o esforço por melhorar-se).

Imbuído de valores filosóficos me dirigi polidamente à senhora, questionando como ela estava. Claro que a resposta foi uma afirmação categórica sobre estar bem, automática, não havia ali vinculo nenhum de confiança, e por traz dessas afirmativas robóticas estavam arames farpados, protegendo o sujeito do desconhecido. Questionei se ela seria a mãe da criança, e a resposta foi não; ali estava eu diante da avó e meu suposto engano me garantiu reflexões acertadas.

Modifiquei meu tom de voz, para algo mais amoroso e gentil e me dirigi à criança sem saber se minhas palavras seriam compreendidas, mas consciente de que alguma parte da comunicação seria feita, seja pelo tom vocal, seja pelas emanações psíquicas, ou pelo meu acanhado gesto de carinho que estava ensaiando. Estendi a mão até os cabelos curtos e de diminutas voltas concêntricas do pequenino. Direcionei algumas palavras de estimulo, externei um sorriso limitado, porem sincero por estarmos ali, todos juntos, reunidos, mesmo que sob circunstancias tão sofríveis; um acanhado sorriso se esboçou pela compreensão de ali estar um espírito em potencialidades infinitas, em um momento de experiência, de lições complexas para todos, mas em estado transitório da caminhada. Abstrações se formaram sobre o que pensava dos agressores, e uma confiança ainda maior na necessidade de sermos pedagogos e facilitadores do desenvolvimento humano se estabeleceu em detrimento a pulsões vingativas e de conteúdo raso, sem finalidades. Assim, um pouco do desgosto deu lugar a necessidade de trabalho em catalise à transformação do sujeito, trabalho na compreensão da mente inquieta dos seres humanos, trabalho em serviço ao próximo e na compreensão de si.

Um tanto acanhado, sem roteiro algum a seguir, resolvi me despedir. Antes perguntei se teria algo que eu pudesse fazer pela senhora, ela respondeu que não, que apesar de suas dificuldades de estar ali há algum tempo, sem estrutura de alojamento, não havia nada que eu pudesse fazer. Facilitei para que ela falasse um pouco mais, todavia a comunicação rapidamente se arrefeceu.

Ao começar me afastar, algo inesperado aconteceu...

Por entre a pequena grade de tubos de aço em paralelo que circundava a cama, o pequenino estendeu seu delicado bracinho em direção a minha mão; eu aproximei-a, facilitando a sua ação, e em um gesto que creio não se apagará da minha mete, ele abarcou meu indicador com toda sua pequenina mão... Olhei para o alto, mordendo meu lábio superior, tentando conter as lágrimas que eram anunciadas pelos nós na garganta.

Segundos depois ele soltou meu dedo, e dispersou seu olhar. Olhei para o Marco, que ali estivera todo o tempo como soldado cobrindo a retaguarda para o avanço mais seguro, garantindo que eu transpusesse meus medos em ambiente tão desconhecido e situação tão penosa.

Seguimos cabisbaixos procurando algum alento no silêncio confortável que os introspectivos se proporcionam mutuamente.

Em casa as lagrimas se fizeram abundantes...