Quando mencionaram violência sexual já me bateu um mal
estar mesclado com tristeza, nada de raiva, nem muitas palavras na mente, só
esse sentimento, esta clareira nebulosa. Esfreguei a mão espalmada sobre o
couro cabeludo e contraindo a musculatura da testa algumas rugas se revelavam enquanto
os olhos se detinham fechados durante a ação.
Ao falaram a idade da criança eu fechei a mão com
chumaço de cabelo preso entre os dedos e, numa inspiração profunda, puxei enquanto
enrugava todo o rosto em uma expressão de desgosto e aversão.
Era a reunião de sexta-feira no hospital, uma
supervisão onde discutíamos os casos atendidos no projeto de psicologia
hospitalar. Sempre que as aulas de patologia terminavam mais cedo eu e o grande
amigo Marco seguíamos para a supervisão, quase sempre no silêncio de nossa introspecção
somado a vergonha e insegurança de estar em um campo de estudo e trabalho um
pouco diferente do nosso e entre tantas mulheres desconhecidas.
A descrição do caso ia revelando nuances cada vez
menos coloridos, até compor um quadro horrendo, um borrão cinza. A constituição
física que nos era descrita revelava debilidades motoras, além de algum grau de
autismo, e que sofrera, além de terríveis abusos sexuais, fraturas em mãos e
pés. Marcas antigas de queimadura de cigarro e uma contusão facial, muito
provavelmente produzida por soco, agregavam entalhes que configuravam uma obra
dantesca. Sérios agravos de saúde inspiravam um cuidado intensivo da parte
médica e da enfermagem, e a catástrofe psíquica igualmente demandavam atenção extrema
dos psicólogos e acadêmicos envolvidos no suporte mental.
Mãe conivente com as ações do padrasto. O caso havia
sido descoberto por uma assistente social que desconfiava das historias mal
contadas pela mãe sobre os ferimentos do garoto.
A face se contraia em uma expressão de desanimo, uma
respiração profunda como se uma canseira se apoderasse de mim; uma canseira que
não era física, era um desgaste por tantas atrocidades cometidas pelos seres
humanos. Não havia uma gota sequer de raiva, nada; apenas um padecimento
silencioso, um pesar muito grande por toda a humanidade.
A reunião seguiu, mais alguns casos foram descritos,
mais algumas perturbações, porem nenhum havia provocado impressões tão fortes
quanto a primeira descrição.
Passaram-se seis dias até que voltássemos às
atividades do projeto. Após uma aula de conteúdo desnutrido, vestimos nossas
armaduras brancas e transpusemos um pouco de nossos medos, encorajando-se
mutuamente seguimos, eu e o Marco, à sala da psicologia hospitalar. Ali a
coordenadora sugeriu que visitássemos a criança do terrível ocorrido. Então, troquei
um olhar significativo com meu amigo, como se confirmássemos que nossos carregadores
estavam municiados e o gatilho devidamente destravado para uma missão de
assalto, tensos, amedrontados, mas convictos da necessidade da missão.
O campo era totalmente desconhecido, nem mesmo como chegar
à UTI pediátrica era de nosso conhecimento, nem tão pouco se poderíamos entrar.
Depois de alguns corredores chegamos à entrada. Abri
vagarosamente a porta olhando cuidadosamente, reparando se estávamos sobre a
mira reprobatória de alguém, fomos adentrando vacilantes, temerosos de sermos
alvejados por alguma reprovação.
Caras inéditas vestiam um jaleco diferente, azulado e
de conformação distinta do que trajávamos. Perguntei se precisaria de um
daqueles e me indicaram o armário onde conseguiríamos o par.
Com as mãos devidamente lavadas, inquirimos sobre qual
aposento estaria o pequenino, sendo apontado o leito quatro.
No minúsculo módulo de tratamento estavam algumas
pessoas: uma senhora sentada próximo ao leito, dois médicos e talvez uma aluna
de anos avançados.
Postamo-nos um pouco afastados, temendo alguma
repressão, mas nem nossos nomes quiseram saber, era como se não estivéssemos
ali.
Dali pude ver a criança e...
Meu Deus...
Uma respiração muito profunda inflava meu tórax e
enquanto sorvia o ar fechei os olhos com força por alguns segundos. Poucos
pensamentos se processavam e contra a carcaça repleta de ar uma tristeza plúmbica
e desfocada me pressionava.
No leito uns olhos muito expressivos, de um vigor contrastante
com sua frágil constituição física, comunicava profunda insatisfação com os
procedimentos médicos. Sua mãozinha buscava, em um esforço hercúleo, retirar a
mão do medico que tentava uma ausculta em seu abdome, em auxílio ao
procedimento o outro doutor imobilizou o significativo esforço do pequeno.
Seus leves quinze quilos denotavam desnutrição
importante, mais um nuance de crueldade, cuja sonda parenteral tentava
contrapor.
A criança gemia em seu esforço contrariado, os médicos
pouco falavam, a frialdade dos procedimentos manifesta na técnica silenciosa
talvez tentasse proteger os sentimentos daqueles homens que por de baixo daquelas
armaduras brancas reforçadas por outras azuis, eram feitos de um agregado
biológico tão frágil, tão tênue, que uma leve entropia seria suficiente para
lhes aniquilar a existência.
Observei mais atento os equipamentos, seguindo as
mangueiras que partiam do pequenino até as maquinas ainda desconhecidas para
mim. Nessa observação notei que algum coração sensível por ali estivera e
pacientemente materializara seus bons sentimentos em delicados móbiles feitos
com alguns materiais do próprio hospital. Talvez não esteja certo, mas creio
que não teriam sido aquelas mãos de gigantes mascarados a fazê-los.
Enquanto aguardava a saída dos médicos, na batalha em
que me encontrava, a trincheira foi se enchendo de lama e a umidade foi
infiltrando no coturno, gelando pés cansados, de soldado acuado há meses, que
começava a se questionar o porquê do absurdo hediondo de combater, o porquê da
violência, e o porquê de responder com ainda mais violência. As palavras de
algumas das psicólogas me vieram em mente: “... a morte seria pouco para um ser
desses” - se referindo ao padrasto, e essa lembrança foi como um vento frio no
meu posto lamacento, uma tristeza desolada me cansou ainda mais. Putz, psicólogas,
talvez tivessem por dever crer na capacidade de transformação do sujeito, no
entanto estavam reivindicando a pena capital para o individuo e ainda mais, sugerindo
a tortura, a total desistência da possibilidade de alteração, em que toda a
pedagogia é enterrada, sepultada, e em lapide fria grafada em letras raivosas
de vingança: aqui jaz toda a humanidade.
Emudecido em minhas reflexões arfantes, me deparai com
a ausência dos médicos e a necessidade de fazer algo. Entrei no aposento frente
a frente à senhora postada na cadeira para acompanhantes e fronteiriço o leito
se estendia entro nós. Cogitei sobre a possibilidade de ser a genitora da
criança, mesmo sabendo da conivência da mãe nenhum sentimento de ódio me veio,
pelo contrario, padeci da enfermidade mental da senhora, sem os preconceitos da
culpa (creio que culpar seja uma forma limitada e limitante de observar a
causalidade dos fenômenos, creio que um universo mais abrangente desponta
quando atribuímos responsabilidade e não culpa; a culpa é imbuída de
preconceito, é estática e fatalista, geradora de repressão e ódio, mas quando
atribuímos a responsabilidade, então a ação é passível de compreensão e, assim,
de transformação, validando métodos pedagógicos, validando acreditar na
humanidade, validando todo o esforço por melhorar-se).
Imbuído de valores filosóficos me dirigi polidamente à
senhora, questionando como ela estava. Claro que a resposta foi uma afirmação
categórica sobre estar bem, automática, não havia ali vinculo nenhum de
confiança, e por traz dessas afirmativas robóticas estavam arames farpados,
protegendo o sujeito do desconhecido. Questionei se ela seria a mãe da criança,
e a resposta foi não; ali estava eu diante da avó e meu suposto engano me
garantiu reflexões acertadas.
Modifiquei meu tom de voz, para algo mais amoroso e
gentil e me dirigi à criança sem saber se minhas palavras seriam compreendidas,
mas consciente de que alguma parte da comunicação seria feita, seja pelo tom
vocal, seja pelas emanações psíquicas, ou pelo meu acanhado gesto de carinho
que estava ensaiando. Estendi a mão até os cabelos curtos e de diminutas voltas
concêntricas do pequenino. Direcionei algumas palavras de estimulo, externei um
sorriso limitado, porem sincero por estarmos ali, todos juntos, reunidos, mesmo
que sob circunstancias tão sofríveis; um acanhado sorriso se esboçou pela compreensão
de ali estar um espírito em potencialidades infinitas, em um momento de
experiência, de lições complexas para todos, mas em estado transitório da
caminhada. Abstrações se formaram sobre o que pensava dos agressores, e uma
confiança ainda maior na necessidade de sermos pedagogos e facilitadores do
desenvolvimento humano se estabeleceu em detrimento a pulsões vingativas e de
conteúdo raso, sem finalidades. Assim, um pouco do desgosto deu lugar a necessidade
de trabalho em catalise à transformação do sujeito, trabalho na compreensão da
mente inquieta dos seres humanos, trabalho em serviço ao próximo e na compreensão
de si.
Um tanto acanhado, sem roteiro algum a seguir, resolvi
me despedir. Antes perguntei se teria algo que eu pudesse fazer pela senhora,
ela respondeu que não, que apesar de suas dificuldades de estar ali há algum
tempo, sem estrutura de alojamento, não havia nada que eu pudesse fazer.
Facilitei para que ela falasse um pouco mais, todavia a comunicação rapidamente
se arrefeceu.
Ao começar me afastar, algo inesperado aconteceu...
Por entre a pequena grade de tubos de aço em paralelo
que circundava a cama, o pequenino estendeu seu delicado bracinho em direção a
minha mão; eu aproximei-a, facilitando a sua ação, e em um gesto que creio não
se apagará da minha mete, ele abarcou meu indicador com toda sua pequenina
mão... Olhei para o alto, mordendo meu lábio superior, tentando conter as lágrimas
que eram anunciadas pelos nós na garganta.
Segundos depois ele soltou meu dedo, e dispersou seu
olhar. Olhei para o Marco, que ali estivera todo o tempo como soldado cobrindo
a retaguarda para o avanço mais seguro, garantindo que eu transpusesse meus
medos em ambiente tão desconhecido e situação tão penosa.
Seguimos cabisbaixos procurando algum alento no
silêncio confortável que os introspectivos se proporcionam mutuamente.
Em casa as lagrimas se fizeram abundantes...