20 de fev. de 2010

Só o primeiro dia

Dezoito horas que ela havia partido. O insuportável não eram as horas, mas o partido. Dezoito horas de enclausuração, mas não eram as horas, era a ausência de perspectiva de sair do cárcere, de ter seu amor estancado, se aglutinando pelo corpo, embolizando seus sentidos.

Quando criança a ausência da mãe, mesmo da cotidiana ida aos primeiros anos escolares era sofrimento rotineiro, sentia saudades. Mas agora não era uma relação filial, não se tratava da segurança e afeto das relações inerentes entre útero e eclodente, era algo muito mais visceral, era cardíaco, cerebral, sexual, era sua alma gêmea que partia e não voltaria ao soar do sinal.

O por do sol também lhe rendiam apertos, a penumbra se espessando e o grande astro sendo cortado pelo horizonte lhe fazia sentir, muitas vezes, algo soturno. Mas agora não era o pequeno sol, viveria feliz sem ele, mas ao lado dela.

A morça da saudade, hidramática das personalidades biliosas, começou pressionar-lhe o peito e em poucos minutos já lhe encurtava a expansão pulmonar.

Ligou a tv em busca de alguma presença sonora, mas o espaço torácico continuava a se reduzir. Foi até o computador procurando analgesia mais interativa, mas ninguém mais poderia lhe confortar e menos ainda virtualmente.

Quis deixar de existir, mas sem morrer, virar vento sem ter de se matar. Encurralado, olhou ao redor e só viu sua angustia que já beirava o desespero. Talvez fora de casa algo o distraísse, mas já não era talvez, tinha que sair, o desespero, o desespero!

Na rua a claridade o acalmou um pouco. Lembrou dos beijos - sempre cultivou cada detalhe para que não se tornassem entediantes - os beijos, lábios macios que brincavam com os seus antes que se fundissem em saliva e línguas; mãos delgadas e afetuosas permeavam seus cabelos pendulando entre o carinho meigo e o sensual.

Mas essa breve distensão não foi suficiente para chegar ao final do quarteirão. Seus olhos recobraram o foco ao mesmo tempo que a imagem mental se turvava e na medida que essa rápida transição ocorria sentiu como se algo em seu peito se rompesse, sua garganta entrou em colapso, como se alguém o esganasse. Apertou a mão sobre o esterno em busca de algo tangível para arrancar, a dor já lhe era física, mas no fechar dos dedos somente sua camisa se prendeu. Repetiu a ação enquanto em deglutições forçadas tentava engolir o que lhe pressionava a glote.

“Ah meu Deus!”, foi só o que conseguiu formular em pensamento, que se afunilavam em angustias pavorosas.

“O sol, o sol!”. Entardecia, mas o sol ainda brilhava morno, talvez a presença luminosa o reconfortasse. Apressou os passos até a avenida, onde não haviam tantas arvores, e no primeiro momento em que se viu banhado de claridade parou, olhou diretamente para o sol, mas não resistiu por muito tempo. Cerrou os olhos, deixou que os braços pendessem com as palmas das mãos iluminadas para receber o calor.

Inspirou o mais fundo que pode e sentiu a temperatura lhe acolher. Pensou naqueles braços que lhe envolvia de tantas formas: as vezes furtivos lhe apertavam enquanto estudava, outras vinham abertos em sua direção, por vezes o aquecia nas madrugadas imprevistas dos desdobramentos dos passeios da tarde desprovidos de agasalho, e muitas vezes, por horas a fio, agarravam-se ao seu corpo e permaneciam ali, com o misterioso poder de parar tudo ao redor e acelerar os relógios.

Mas a realidade verteu gélida e pegajosa, grudou em seu corpo uma massa fria que repelia as ondas solares, e começou a sentir frio e infinitamente só em seu desespero.

Abriu os olhos, logo o sol, desapareceria no horizonte. Os globos oculares moveram-se rápido para os lados em busca de alguma saída, “uma idéia, rápido!”, não suportaria mais a despedida estelar...

“O chuveiro, o chuveiro!”. Voltou correndo para casa, fugindo do que lhe parecia dose insuportável, mortal de angustia.

A respiração atravessava arfante e dolorida pela garganta. Tirou a roupa apressado, na esperança de despir-se da saudade.

A água que jorrando forte e quente o acolheu. Ergueu o rosto para o alto, sentiu-se mais seguro para envolver-se em sua dor. Deixou que um urro escapasse de sua boca pouco aberta, mas em grande tensão muscular.

O chuveiro, seus olhos, nariz, boca, todos mesclavam seus fluidos. Sentou-se no chão abraçando as pernas fletidas, encostando o rosto nos joelhos. Na medida que se acolhia o choro se tornava mais abundante, desesperado, e a opressão em seu peito reduzia aos suspiros. A água escorrendo abundante o deixava a vontade para secretar sua dor liquefeita.

Queria deixar de existir, escorrer pelo ralo inconsciente.

Naquele momento compadeceu-se dos suicidas, dos adictos fugitivos de si mesmos, sentiu um pesar devastador em pensar que havia outros desesperados em dor, que a todo segundo alguém se desfacelava em angustiosa saudade, dos pais que perdiam seus filhos, dos amores desfeitos pelas tragédias, das traições...

Permaneceu no chão por quase duas horas. Certo de que o sol já havia sido sepultado, resolveu se levantar, mas, sentiu-se fraco. Ergueu o braço direito e tateando por cima da cabeça pousou demoradamente a mão sobre o registro. Receava perder o conforto compassivo da água quente. Fez um pouco mais de força e se pos de pé. No intento de demorar-se um pouco mais agarrou o sabonete e friccionou pelo corpo, sentiu os movimento um tanto incordenados. Ao esfregar a face deixou que uma quantidade ardidamente dolorosa chegasse ao olho. Seu primeiro impulso foi colocar a mão para o lavar, mas, percebeu que a forte dor física causava-lhe certa emancipação do padecimento psíquico. Então, apenas esforçou-se por abrir os olhos para deixar que a água arrastasse gradativamente a química nociva.

A medida que a ardência passava, uma clareira consciente foi se abrindo. Aproveitou para desligar o chuveiro e sem se enxugar encarou-se no espelho. Viu o sofrimento estampado, uns olhos muito vermelhos se fixaram nos seus.

Cerrou os dentes com forca, contraiu vigorosamente os músculos faciais em mais uma tentativa de negar a realidade. Inútil, os mesmos olhos vermelhos o fitavam. Uma cara de revolta mirou para ele e “Agora somos só nós!”.

Alcançou a toalha sem deixar de se olhar. Dirigiu-se ao quarto e começou a se vestir vagarosamente, porem com o aumento gradual da angustia foi apressando a ação. Começou a temer o padecimento extremado que retornava.

Em passos rápidos acendeu todas as luzes da casa e deixou todos os cômodos abertos. Pareou no corredor diante do grande espelho. Apertou as mãos fortemente contra o peito. As lagrimas atingiam o chão, algumas tocaram seus pés. “Não posso suportar mais”, pensou em beber algo, mas não tinha nada alcoólico em casa, também não tinha ansiolíticos nem sedativos.

Começou a contrair-se, e buscou a cama para dar mais liberdade ao seu sentimento de opressão. Se contorcendo todo e com o rosto e as mãos molhados, começou a respirar aceleradamente, desesperadamente rápido. Uma embriagues oxidativa foi apaziguando seus movimentos, já não pensava em muita coisa, era todo respiração, era todo contrações curtas do tórax, era todo o som ritmado do ar se deslocando.

Aos poucos as pálpebras foram se fechando, um silêncio em sua mente foi se formando em meio a pensamentos difusos e que iam tendo o ritmo desacelerado. Já não formava imagens nítidas... :

A atmosfera rarefeita se tornou,
Pela altitude das angustias dilacerantes,
A resposta fisiológica ofegante,
E em oxigênio o encéfalo se afogou.

Dispersa em embriagues oxidativa
A realidade que lhe ceifava os desejos
E as lágrimas, solvente benfazejo,
Diluíam a lógica positiva.

Exausto, em pálpebras de chumbo,
As águas corriam mais brandas
E o tórax mais expansivo.

Aos poucos se despedia do mundo,
E em sonhos atendidas as demandas,
Enfim, o silêncio, o alivio.


Bruno volski