26 de dez. de 2008

Um natal qualquer, uma experiência única.

Um pequeno pasto a minha esquerda, que me acompanharia por uns 400 metros acrescentou a poesia necessária do dia. O sol se pondo ao fundo, o vapor da água refletia alguns raios que transpassavam ruidosamente as nuvens tornando visíveis seus feixes, quase audíveis. Havia chovido fazia poucas horas, mas não se via água no caminho, exceto por algumas poças mais profundas, e toda aquela umidade parecia ter convertido o pasto em um tapete verde obtuso. Na mente um fundo musical bem definido se desenvolvia nitidamente em acordes suaves e voz grave (Edie Vedder – Into de wild) sobre a influencia do filme que havia assistido à poucas horas.

Meus passos vacilantes, a procura de um caminhar antalgico para meu dedinho do pé, maltratado no dia anterior por uma topada, dessas que lembramos da mãe, não era menos vacilante que meus pensamentos que, apesar de contemplarem a cena de cores vigorosas que se desdobrava a minha esquerda, estava indagativo: eu não sei fazer nem se quer uma sutura, sou limitado em minha capacidade de escutar, e ainda não tenho nenhum plano em mente, o que vou fazer lá? Não conheço os funcionários, nem os médicos, nem os residentes, nem os pacientes... Mas ali era minha vontade, meu sentimento, ditando que era para que eu fosse. Então me lembrei do Rogers (Róginho segundo a querida Lara =D ) que afirmava empiricamente que toda vez que seguiu seus sentimentos acabou por finalizar em uma experiência muito acertada, ao contrario de quando guiado por seu intelecto.

Um pouco mais resoluto, guardava a mente em um estado contemplativo, as ruas bastante esvaziadas pelo natal, e o silencio espesso de minha mente concentrada na observação passiva.

O calor do dia vencera a chuva, e o asfalto estava seco, o pasto que margeava meu caminho já havia me abandonado há alguns metros. De longe vi que meu atalho estava suficientemente transponível, mesmo na ausência do asfalto. Ali o silêncio era ainda maior, pude ouvir os passos mais vigoroso do coturno que continha o pé não lesionado, enquanto o outro tentava se esquivar das pedras maiores. O cavalinho estava ali no fundo do terreno do hospital como sempre, e como sempre estava pastando o verde que crescia espontâneo. Dali vi o estacionamento, que estava bastante cheio, curioso por ser natal, mas observei que não eram os carros novos dos alunos, eram um pouco mais usados, algum muito usados, desgastados pela areia que escorre irremediavelmente, sem retorno para a parte superior da ampulheta existencial, então já não ficou tão curioso todos aqueles automóveis ali, eram os acompanhantes.

Chegando mais perto, reparei que o modesto pinheiro, próximo ao pronto atendimento, estava com algumas luzes. Quem será que as colocou ali? Será que por determinação de alguém em posto de poder? Ou será que fora ação espontânea de mente criativa e sensível?

Tudo estava muito alterado por minha percepção, muito alterado. O peso da obrigatoriedade da presença acadêmica, a ausência de autoridade, a liberdade por estar ali por escolha, alterou todas as cores, todas as dimensões, e todos os sons, estavam todos mais bonitos e mais reais, o ambiente transcendia seu papel coadjuvante.

O jaleco cobriu as forças do Exercito Zapatista, os rasgos da camisa e seus rebites agarrados com dificuldades às fibras apodrecentes. Mas o guarda-pó hasteou o Anabola, gravado no bolso esquerdo do peito, trajando o coração com a simbologia das mais elevadas aspirações sociais de amor indescritível pela humanidade, de justiça, criatividade, ordem, liberdade e responsabilidade.

Na entrada uma palavra de encorajamento para quem chegava para o trabalho em data tão significativa. A penumbra acrescentava mais uma camada de tristeza aqueles corredores empalidecidos. Lavei minhas mãos, sentido a água, acho que fora a primeira vez que o líquido realmente esteve presente em suas propriedades físicas ali no hospital, passível de ser sentida, na mente liberta da obrigatoriedade.

Algumas pessoas já adormeciam em seus leitos, quase todos dotados de acompanhantes. Mas ali no fundo do corredor da ala cirúrgica uma cena me chamou a atenção: uma penumbra cobria o quarto silencioso, parecendo ainda maior a solidão do homem que ali estava, ocupando solitário um dos três leitos disponíveis no aposento. A impressão que tive era que se concentrasse um pouco mais poderia ouvir o gotejar do soro, e esta água de concentração ideal era a única coisa visível a se movimentar. Não entrei, recuei, busquei o prontuário. O enfermeiro que me entregou fez alguma brincadeira com relação a estar trabalhando na data comemorativa, “os amaldiçoados”, segundo ele, rebati dizendo que aquilo era um trabalho bonito, muito bonito, não sei se provocou alguma reação, ele já virava o corredor enquanto eu finalizava meu comentário. Primeiro o nome, L., tinha sido uma cirurgia de apêndice, parece que emergencial, ali constava também que o paciente era comunicativo e estava um pouco ansioso, outras informações não me chamavam atenção, faltava conhecimento para tanto.

Adentrei o quarto, L estava sentado quase deitado, olhos fechado mas não dormia, ao meu aproximar foi abrindo os olhos. Estendi a mão, que foi prontamente acolhida, perguntei como estava, disse estar se sentindo melhor apesar da dor; constatei que ansioso estava eu, não havia me apresentado. Uma enfermeira adentrou o aposento, interrompendo a conversa e me dando algum tempo pra pensar no que faria naquele dialogo, como conduziria, e percebi que ali residia o problema, no conduzir, no planejar, tinha que acreditar um pouco mais na inteligência do universo e deixar que a espontaneidade imperasse.

A enfermeira se foi, e pude me apresentar. Voltei a indagar, de fato L era comunicativo, respondeu prestativamente as perguntas, muito embora falasse com uma entonação de padecimento, sua dor era evidente. Indaguei sobre seu estado doloroso, ele caracterizou precisamente os sintomas, disse também da dor nas costas referente a uma operação de hérnia de disco que realizara no ano anterior, cujas marcas fez questão de mostrar. Um pouco mais de conversas técnicas até que conseguisse, em mim, permitir adentrar no campo emotivo de L. Questionei sobre a dificuldade em estar ali; um pouco mais de seriedade pintou seu semblante, disse estar se acostumando, pois no ano anterior também esteve no hospital devido à cirurgia nas costas. Perguntei se existia algo que poderia fazer por ele (me lembro da primeira vez que perguntei aquilo no hospital, fiquei alguns minutos meditando se eu estaria disposto a fazer essa pergunta sinceramente e arcar com suas conseqüências), ele pediu para que eu verificasse se seria possível alguma analgesia.

O enfermeiro adentrou o quarto para verificar o soro e colher algumas informações. Fiquei pensativo se indagaria sobre o anestésico ali na frente de L, se isso talvez não quebrasse a autoridade do enfermeiro, se talvez não fosse melhor que estivéssemos longe dos ouvidos de L para conversarmos sobre a analgesia. Mas antes que eu criasse mais complicações intelectuais o enfermeiro disse que logo prepararia o anestésico.

O enfermeiro se foi, ficamos novamente a sós. Perguntei sobre o que mais estava fazendo falta estando ali em um dia especial; prontamente L respondeu serem seus filhos, um casal, a grande falta do dia. Explicou que durante este ano transcorrido esteve de licença, passando todo o tempo com as crianças enquanto a mãe trabalhava, e durante esse período se apegou demasiadamente às crianças. De fato pude perceber como sua voz se tornava terna ao mencionar seus filhos. Mas seu semblante foi lentamente transfigurando, do sorriso sereno à um olhar vago ao lembrar a distancia. Não poderia ver seus filhos, pois era proveniente de outra cidade, 90 quilômetros, mas que no momento não poderiam ser transpostos. Também não poderia ligar, não tinha celular, não tinha cartão telefônico, nem sequer algum dinheiro. Aquele quarto solitário me pareceu ainda mais desolador, aquele homem padecia de seu corpo e de seu coração, e aquilo me comoveu, me senti impotente, me senti fraco por não conseguir me comunicar mais calorosamente, e me senti ingrato por ter tanto e partilhar tão pouco.

Perguntei se havia mais alguma coisa que poderia fazer. L disse de sua duvida sobre a licença trabalhista: que venceria em fevereiro, mas que talvez não estaria recuperado da ultima cirurgia a tempo, enfim, se poderia ter o tempo de licença prolongado. Eu disse que poderia pesquisar, que na semana seguinte se ainda estivesse no hospital e se eu obtivesse alguma resposta, partilharia.

Bati a mão no bolso e me lembrei de um fato curioso que havia acontecido ainda quando eu estava em casa: antes de sair, fui pegar meus documentos na gaveta, especialmente minha carteirinha do hospital, creio que sem ela ficaria interessantemente complicado a entrada no hospital com este “belo” (haja relatividade) moicano na cabeça. Ao lado dos documentos havia uma nota de 5 reais, e inexplicavelmente eu a levei comigo, algo estranho, considerando que raramente ando com dinheiro, e sem um propósito fixo de gastá-lo é ainda mais difícil me encontrar com mais que alguns centavos no bolso, mas peguei.

Arrefecida a conversa, me despedi, desejando um feliz natal apesar de ser essa uma situação desagradável, mas que era para o bem dele. Corri para fora do hospital, saindo pela frente e não pela portinha dos estudantes. Na saída fui barrado, “quem é você que nunca vi aqui”, disse o recepcionista. Pensei rapidamente, que aquela era uma excelente pergunta, quem sou eu? (alguns já devem estar rindo a essa altura “é a cara do Bruno” – bom... é... talvez seja a minha cara mesmo hehehehhe.) Agilmente entreguei minha carteirinha, e perguntei se encontraria por perto onde comprar algum cartão telefônico; o simpático e enérgico senhor me apontou uma farmácia logo adiante. Fui em passos apressados, um pouco angustiado por talvez o dinheiro não ser suficiente para o cartão, então pensei que poderia pedir alguns centavos na rua para completar o necessário, usar o aprendizado do “maguêio” street punk. Mas, na farmácia já não havia mais cartões: “estão em falta, mas poderá conseguir aqui no bar ao lado”. Agradeci, e com poucos passos cheguei no bar. Questionei e, “sim temos cartão, é de quarenta unidade”, pensei que o dinheiro não daria, questionei novamente, “4,90”, ufa, quero um.

Lembrado do troco que deixava pra traz me dirigi contente para o hospital... cobri novamente os encapuzados zapatistas. Não pensei muito até chegar no leito. Estiquei o braço com o cartão e disse: olha o que eu consegui com um amigo, ele disse estar cheio, agora se é verdade eu não sei. L fez uma cara muito interessante, um sorriso transpareceu malcontidamente e percebi que ficou um pouco confuso sobre o que diria, não dei tempo para sua confusão, dei um tapinha na sua perna dizendo que “não esquentasse”, e que eu tinha que ir e que se conseguisse a informação da licença voltaria para compartilhar.

Fiquei um pouco chateado ao sair, porque tinha mentido para ele, seria suficiente ter dito que tinha conseguido o cartão, não precisava ter inventado a historia do amigo. A reflexão sobre a necessidade de melhora foi suficiente para recobrar o bom ânimo.
Pensei então no tal do acaso e...

Uou! Quem acredita em coincidências é uma pessoa de fé, a fé materialista, da qual já não preciso mais porque tenho o racionalismo espiritual (a ciência materialista é baseada em postulados criados puramente pela criatividade humana, não representam a realidade absoluta e jamais representarão, está no máximo no mesmo campo de credibilidade que a pulsão religiosa, muito embora o pavor do materialista faça-o agir com preconceitos). Que seria aquela imprevista nota no bolso, e aquela vontade de estar ali naquele momento?

Segui para outras alas do hospital, os outros leitos estavam todos com acompanhantes. Dirigi-me para o pronto atendimento, e as macas estavam espalhadas pelo corredor como de costume, e todos ali estavam com acompanhantes. Fui seguindo até o final do corredor, e uma espécie de “contentamento descontente” (não se refere exatamente ao mesmo significado do poema) me apeteceu: haviam seres dispostos a estarem com seus queridos ali, naquela data especial, compartilhando de seu tempo e atenção, achei a cena muito bonita, e fiquei assim, contente apesar de comovido com tanto sofrimento, senti também como de fato o sofrimento nos iguala, afastando as distancias imaginarias.

Lá no final do corredor havia um desacompanhado. Mas, este, imaginei, talvez fosse solitário também nas ruas. Parecia um andarilho, sua roupa rasgada e suja, do lado de seu leito estavam postadas suas muletas, e uma de suas pernas, um tanto atrofiada, quase tocava com a ponta dos dedos o bebedor. Curvei-me para beber água, uma desculpa, mais esfarrapada que seus trajes, pra me aproximar. Perguntei se o café que tomava estava bom, ele me respondeu q sim, estava sim, então disse que bom, olhei mais alguns segundos pra ele, e me despedi.

Merda, podia ter feito mais que isso.

Um tanto frustrado fui saindo do hospital, tomando consciência de meus limites, de como falta muito mais coragem para me tornar o ser que gostaria de ser, um nó na garganta se configurou, mas sufoquei qualquer intenção de lagrima.

No corredor estava L a caminho do telefone público, disse-me que já ia ligara para seus queridos, eu estralei os dedos e disse “manda vê”.

Aos poucos fui transformando aquela melancolia em felicidade. Aquilo também era bonito, minhas intenções são boas, minha vontade esta se tornando operante, sim sim, eu sou um tanto arrogante, vaidoso, tenho ainda medo do contato humano, sou o Zé-Preguiça, e poucas vezes consigo individuar os seres para estabelecer uma empatia profunda, mas sim, sim, eu tenho condições de vencer esses limites que me afastam da sincronia entre meu pensamento, minha vontade, meu sentimento e minha ação, e assumo de bom grado o trabalho na transposição dos próprios limites.

Voltando pelo meu atalho, caminhando sobre o cascalho e o capim que crescia anarquicamente (espontâneo, e de uma ordenação natural, sem violência), pensei em como estamos constantemente buscando algo, buscando objetivamente algo, e o quanto isso prejudica nossa experiência humana. Sim, podemos traçar metas, isso é importante, mas é igualmente importante estar aberto para a experiência, aberto para a voz que diz sem muita explicação, “vá no hospital hoje”, e mais sem explicação diz “leve esse dinheiro consigo”. E quando paro e reflito sobre quantas experiências perfeitamente encadeadas já tive por me permitir vivenciar, e quantas outras deixei de ter porque meu intelecto sufocou, penso que seria muito interessante se nossas buscas fossem arrefecidas em nossa ação no presente fosse mais atenta para valores abstratos.

Uma vez vi uma definição de sei lá quem da psicologia e juntando com as minhas “piras” ficou assim: o racional é apropriado para a resolução de questões com uma, duas, quem sabe três variáveis, e dentro disso pode ser muito bem representada na expressão limitada da linguagem, mas o sentimento é como uma grande matriz onde podem ser introduzidos variáveis de diversas ordens para um cálculo multifatorial, te tal forma que com tamanha quantidade de informação a expressão linear em palavras é impossível, tornando seu conteúdo mais abstrato. Por isso vemos o quão bem vivem as pessoas com familiaridade e relativa ordem de seus sentimentos. Portanto, sentimento não é uma coisa que se assiste nas novelas globais, sentimento é uma ferramenta de potencial incomensurável e deve ser tratada com muito mais atenção e respeito. Espero que possamos escutar muito mais esse supraraciocinio, pois é instrumento fundamental na aquisição de níveis maiores de liberdade.

O campo já não estava tão verde e o sol já havia transcendido meu horizonte. A pratica no andar antalgico garantia um caminhar menos manco. Algumas poucas pessoas transitavam na rua, olhei para elas imaginando que ali estava todo um manancial de potenciais incomensuráveis, mas que ainda eram extremamente limitadas, limitadas como eu. Senti que a minha experiência no hospital não me afastava delas, não me tornava melhor, nem pior, não era uma questão de “boa ação”, isso não existe, essa caridade piegas é destrutiva, limita o ser, constrange, sufoca, e não era isso..., a questão era o bem estar verdadeiro que estava sentindo, não uma pseudo-felicidade, era uma satisfação grisalha, experiente, que não se constrange com argumentações fajutas, que tem alinhado toda a constelação: pensamento-sentimento-vontade-ação, e não uma satisfação cheia de pesares de noitadas vividas sem propósitos e tempo fodido em vapores alcoólicos.

Estava na frente da casa de um grande amigo, o Fabiano, resolvi passar para um abraço natalino... bom, ai fica pra outra narrativa, tenho que dormir.
Bruno Volski